Lista de pontos
Lógica humana e lógica divina
Quem é capaz de precisar como se toma a decisão inicial de entrega, quando nasce essa primeira ingenuidade e – repito – essa falta de lógica? Uma entrega – eu tenho a minha experiência, e cada um de vós tem a sua – que é necessário renovar a cada instante, cada dia e, em algumas ocasiões, muitas vezes por dia, talvez perdida já a candura dos primeiros momentos. Por nos termos aproximado de Cristo e termos sentido bater com força, com muita força, o seu coração, e termos chegado a saborear as suas delícias, que são «estar Ele com os filhos dos homens»3 – por tudo isso, sabemos o que vale o amor de Deus.
Sim, é preciso renovar a entrega; é preciso voltar a pronunciar: Senhor, amo-Te, e dizê-lo com toda a alma. Ainda que a parte sensível não nos acompanhe, dir-Lho- -emos com o calor da graça e com a nossa vontade: Meu Jesus, Rei do universo, nós amamos-Te.
Quero insistir na falta de lógica humana a que assistimos ao longo destes quarenta e dois anos da nossa história. Encontrámos, meus filhos, o Herodes que quis matar esta grande realidade divina – não é uma ilusão – da nossa vida, uma realidade que nos fez mudar totalmente. A Obra também encontrou Herodes, mais de uma vez, no seu caminho. Mas tranquilos, tranquilos! Não deixámos tantas coisas – os magos fizeram o mesmo, abandonando o seu lugar de residência, onde teriam provavelmente poder e seriam considerados pessoas de muita categoria –, não deixámos os nossos interesses pessoais a troco de uma bagatela. Agora, sabemos muito claramente que o motivo divino que nos inquietou e nos arrancou da nossa indolência é um motivo que vale a pena. Vale a pena! Convém-nos ser fiéis; convém-nos ter tanto amor que na nossa vida não haja lugar para o temor.
Vós sois a continuidade
Meus filhos, quereis dizer comigo ao Senhor que não tenha em conta a minha pequenez e a minha miséria, mas a fé que me deu? Eu jamais duvidei! E isto também é teu, Senhor, porque vacilar é próprio dos homens.
Quarenta e quatro anos! Meus filhos, lembro-me agora do quadrinho com a imagem de São José de Calasanz que mandei colocar junto da minha cama. Vejo o santo vir a Roma; vejo-o permanecer aqui, ser maltratado. E nis- so, vejo-me parecido com ele. Vejo-o santo – e nisso, não me vejo parecido –, até uma ancianidade veneranda.
Sede fiéis, filhos da minha alma, sede fiéis! Vós sois a continuidade. Como nas corridas de obstáculos, chegará o momento – quando Deus quiser, onde Deus quiser, como Deus quiser – em que tereis de ser vós a continuar a corrida, a passar o bastão uns aos outros, porque eu já não poderei fazê-lo. Procurareis que não se perca o bom espírito que recebi do Senhor, que se mantenham íntegras as características peculiares e concretas da nossa vocação. Transmitireis este nosso modo de viver, humano e divino, à próxima geração, e esta à outra, e à seguinte.
Senhor, peço-Te tantas coisas paraos meus filhos e para as minhas filhas... Peço-Te pela sua perseverança, pela sua fidelidade, pela sua lealdade! Seremos fiéis se formos leais. Peço-Te que passes por alto, Senhor, as nossas quedas; que ninguém se sinta seguro se não combater, porque de onde menos se pensa salta a lebre, como diz o provérbio. E todos os provérbios estão cheios de sabedoria.
Compreendei-vos, desculpai-vos, amai-vos, vivei com a certeza de estardes sempre nas mãos de Deus, acompanhados pela sua bondade, sob o amparo de Santa Maria, sob o patrocínio de São José e protegidos pelos anjos da guarda. Nunca vos sintais sós, mas sempre acompanhados, e estareis sempre firmes; com os pés no chão e o coração lá em cima, para saberdes seguir o que é bom.
Deste modo, ensinaremos sempre a doutrina sem erros, agora que há tantos que não o fazem. Senhor, amamos a Igreja porque Tu és a sua cabeça; amamos o Papa, porque tem a função de Te representar. Sofremos com a Igreja – a comparação é do verão passado – como sofreu o Povo de Israel naqueles anos de permanência no deserto. Porquê tantos, Senhor? Talvez para que nos pareçamos mais contigo, para que sejamos mais compreensivos e nos enchamos mais da tua caridade.
Belém é o abandono; Nazaré, o trabalho; a vida pública, o apostolado. Fome e sede. Compreensão, quando trata com os pecadores. E na cruz, com um gesto sacerdotal, estende as mãos para que caibamos todos no madeiro. Só se pode amar a humanidade inteira – e nós queremos bem a todas as almas, não rejeitamos ninguém – do alto da cruz.
Vê-se que o Senhor quer dar-nos um coração grande... Olhai como nos ajuda, como cuida de nós, como se nota claramente que somos o seu «pusillus grex»8, quanta fortaleza nos dá para orientar e corrigir o rumo, como nos impele a lançar aqui e ali uma pedra que evite a desagregação, como nos ajuda na piedade com o seu assobio amoroso.
Obrigado, Senhor, porque sem amor verdadeiro a entrega não teria razão de ser. Vivamos sempre com a alma repleta de Cristo, e o nosso coração saberá acolher, purificadas, todas as coisas da Terra. Assim, deste coração, que refletirá o teu coração amadíssimo e misericordioso, sairá luz, sairá sal, sairão labaredas que tudo abrasem.
Recorramos a Santa Maria, Rainha do Opus Dei. Lembrai-vos de que, por fortuna, esta Mãe não mor- re. Ela conhece a nossa pequenez, e para ela somos sempre meninos pequenos, que cabemos no descanso do seu regaço.
Ser leais
Minhas filhas e meus filhos, todos temos altos e baixos na alma. Há momentos em que o Senhor nos tira o entusiasmo humano; notamos cansaço, é como se o pessimismo quisesse adormecer a alma, e sentimos que alguma coisa tenta cegar-nos e só nos deixa ver as sombras do quadro. Nesses momentos, temos de falar com sinceridade e deixar-nos levar pela mão, como crianças.
Recorrei à conversa confidencial, fraterna, periódica. Recorrei à confissão, que, como tendes bom espírito, fazeis com um sacerdote da Obra sempre que possível17ii. Se procurardes reagir assim, o quadro recuperará imediatamente as luzes e compreenderemos que aquelas sombras eram providenciais, porque, se não existissem, faltaria relevo ao retábulo da nossa vida. «Tu, que habitas sob a proteção do Altíssimo e moras à sombra do Todo-Poderoso, diz ao Senhor: “Tu és o meu refúgio e a minha cidadela, meu Deus, em quem confio”. Ele te livrará da rede do caçador e da peste exterminadora; Ele te cobrirá e te abrigará à sombra das suas asas; e a sua fidelidade será para ti escudo e adarga»18.
Peço a Jesus, por intercessão de sua Mãe bendita e do nosso Pai e Senhor São José – a quem tanto quero –, que me entendais. Sempre, mas muito mais nestes momentos, seria uma traição deixarmos de estar vigilantes, abrirmos a mão, consentirmos na menor infidelidade. Quando há tanta gente desleal, estamos mais obrigados a ser fiéis aos nossos compromissos de amor. Não vos importe se vos parecer que perdestes outros motivos, que anteriormente vos ajudavam a caminhar, e que só vos resta este: a lealdade para com Deus.
Lealdade! Fidelidade! Homens de bem! No grande e no pequeno, no pouco e no muito. Querer lutar, ainda que às vezes pareça que não conseguimos querer. Se tiverdes um momento de debilidade, abri a alma de par em par e deixai-vos conduzir suavemente: hoje subo dois degraus, amanhã quatro... No dia seguinte, talvez não subamos nenhum, porque ficámos sem forças. Mas queremos querer. Temos, ao menos, desejos de ter desejos. Meus filhos, isso já é combater.
Eu aconselharia algum que não estivesse decidido a ser constante nos seus compromissos, a manter-se íntegro na fé e irrepreensível na conduta, a desistir de ser hipócrita, a ir-se embora e a deixar-nos, aos outros, tranquilos no nosso caminho. Há um refrão na minha terra que diz: «o herrar o quitar el banco»19*; ou se desempenha o ofício próprio dos cristãos, ou se suprime o banco onde não se trabalha.
A nossa tarefa sobrenatural é amar a Deus de verdade, que foi para isso que Ele nos deu um coração e no-lo pediu inteiro. Não podemos ser fingidos; eu sei que nenhum dos meus filhos o é. Insisto, contudo: se não meditardes no que vos digo, se não procurardes estar atentos, perdereis o vosso tempo e fareis muito mal à Igreja e à Obra. O Senhor, filhas e filhos da minha alma, está à espera da nossa correspondência, levando em consideração que somos frágeis e estamos inclinados para todas as misérias. Por isso, ajuda-nos sempre: «Porque se uniu a Mim, Eu o libertarei; defendê-lo-ei, porque reconheceu o meu nome»20, diz o salmo.
Uma súplica ardente
Senhor, ficas contente quando recorremos a Ti com a nossa lepra, com a nossa fraqueza, com a nossa dor e o nosso arrependimento; quando Te mostramos as nossas chagas para que nos cures, para que faças desaparecer a fealdade da nossa vida. Bendito sejas!
Faz com que todos os meus filhos entendam que temos obrigação de Te desagravar, ainda que estejamos feitos de barro seco e nos quebremos de vez em quando, e seja necessário que os outros nos sustenham. Ajuda-nos a ser fiéis aos nossos compromissos de amor, porque Tu és a fortaleza de que a nossa frouxidão precisa, sobretudo quando se vive no meio da crueldade dos inimigos no campo de batalha.
Faço o propósito de percorrer de novo, em viagem de penitência, em ação de graças, cinco santuários marianos, quando Te dignares remediar – começar a remediar – esta situação. Bem sei que a primeira coisa que queres é que recorramos a tua Mãe – «Ecce Mater tua!»28 – e nossa Mãe. Recorrerei a ela com espírito de amor, de agradecimento e de reparação, sem espetáculo.
Faz com que sejamos duros connosco próprios e compreensivos com os outros. Faz com que não nos cansemos de semear boa doutrina no coração das almas, «opportune et importune»29, a toda a hora, com o nosso pensamento, que nos leva a colocar-nos na tua presença; com os nossos desejos ardentes, com a nossa palavra oportuna, com a nossa vida de filhos teus.
Faz com que metamos na consciência de todos a possibilidade esplêndida, maravilhosa, de manter um trato íntimo contigo, sem sentimentalismos. Procuro com alegria aquilo que Tu nos dás? Senhor, bendito sejas! Se não queres, não nos dês esse consolo, mas não podemos pensar que seja mau desejá-lo. É bom, como quando nos apetece saborear uma fruta, um alimento. Meus filhos, pôr esse aliciante é parte do modo de agir de Deus.
Faz com que não nos faltem as consolações divinas, e que, quando quiseres que passemos sem elas, compreendamos que nos tratas como adultos, que não nos dás o leite que se dá a um recém-nascido, ou a papinha que alimenta uma criatura que mal começa a ter os primeiros dentes. Concede-nos a serenidade de entender que nos proporcionas o sustento sólido, daqueles que já podem andar por conta própria. Suplico-Te, porém, que Te dignes conceder-nos uma dedada de mel, porque este momento é muito penoso para todos.
Peço-Te, por mediação de Santa Maria, tendo como advogado o meu Pai e Senhor São José, invocando os anjos e todos os santos, as almas que estão na tua glória e gozam da visão beatífica, que intercedam por nós, para que nos mandes os dons do Espírito Santo.
Rogo-Te também que percebamos que és Tu quem vem no sacramento do altar e que, quando as espécies desaparecem, Tu, meu Deus, não Te vais embora: ficas! Começa em nós a ação do Paráclito, e uma Pessoa nunca está só: estão smpre as três, o Deus único. Que este nosso corpo e esta nossa alma, esta pobre criatura, este pobre homem que eu sou, saiba sempre que é como um sacrário onde a Santíssima Trindade estabelece a sua morada.
Minhas filhas e meus filhos, dizei comigo: creio em Deus Pai, creio em Deus Filho, creio em Deus Espírito Santo, creio na Santíssima Trindade. E, com a ajuda da minha Mãe, Santa Maria, lutarei para ter tanto amor que chegue a ser, neste deserto, um grande oásis onde Deus possa descansar. «Cor contritum et humiliatum, Deus, non despicies!»30: o Senhor não faz ouvidos surdos a um coração arrependido e humilhado.
A fortaleza da humildade
Parece-me um sonho – a mim, que já vivi tantas coisas – contemplar a realidade esplêndida do nosso Opus Dei e verificar a lealdade dos meus filhos a Deus, à Igreja e à Obra. É lógico que, de vez em quando, alguém fique pelo caminho. Damos a todos o alimento apropriado, mas, ainda que se tome um alimento dieteticamente muito bem escolhido, nem tudo se assimila. Não quer isto dizer que sejam maus. Esses pobrezinhos voltam mais tarde, de lágrimas nos olhos, mas já não se pode fazer nada.
É uma desgraça que pode acontecer-nos a todos, minhas filhas e meus filhos; a mim também. Enquanto estiver na Terra, também eu sou capaz de fazer uma tolice grande. Com a graça de Deus e as vossas orações, e com algum esforço da minha parte, tal nunca me acontecerá.
Não há ninguém que esteja livre deste perigo. Mas, se falarmos, não acontece nada. Não deixeis de falar quando vos suceder alguma coisa que não gostaríeis que se soubesse. Dizei-o imediatamente. É melhor se for antes; mas se não, que seja depois; mas falai. Não esqueçais que o maior pecado é a soberba. Cega muitíssimo. Há um velho refrão ascético que reza assim: «Luxúria oculta, soberba manifesta».
Nunca me cansarei de insistir convosco na importância da humildade, porque o inimigo do amor é sempre a soberba; essa é a pior paixão: é aquele espírito de raciocínio sem razão que lateja no íntimo da nossa alma e que nos diz que somos nós que temos razão e não os outros, coisa que só é verdade por exceção.
Sede humildes, meus filhos. Não com uma humildade de fachada, como a de alguns que costumavam andar encolhidos pela rua. É possível ter uma atitude marcial do corpo e ser muito humilde. Desse modo, tereis uma vontade íntegra, sem fendas; um carácter comple- to e não fraco; esculpido e não esboçado. E o vaso não se quebrará.
Ser leal
Sede fiéis, sede leais! Na vida, tereis muitas oportunidades de não ser fiéis e de não ser leais, porque nós não somos plantas de estufa. Estamos expostos ao frio e ao calor, à neve e às tormentas. Somos árvores que às vezes se enchem de pó, porque estão expostas a todos os ventos, mas que ficam limpas, lindas, quando a graça de Deus cai sobre elas como a chuva. Não vos assusteis com nada. Se não fordes soberbos – repito –, seguireis em frente, sempre!
E como fareis bem as coisas, para corresponder ao amor desta bela mãe que é a Obra, para ser leais? É muito fácil, muito fácil. Em primeiro lugar, tendes de ser dóceis, sem protestar, porque não vos conheceis a vós próprios. Eu já fiz setenta anos, e ainda não me conheço bem, quanto mais vós... Por onde andará o vosso conhecimento próprio!
A mim, não me fazem a correção fraterna, mas há dois irmãos vossos10ii que me dizem com muita clareza o que lhes parece oportuno, e eu fico-lhes agradecido com toda a minha alma. Praticai a correção fraterna! É um modo delicadíssimo de nos amarmos, se observarmos as condições que foram estabelecidas para não ser incómoda. É incómoda para quem a faz; pelo contrário, quem a recebe deve agradecê-la, como se agradece ao médico que meteu o bisturi numa ferida infetada, para a tratar.
Depois, fazê-la. Disse-vos inúmeras vezes que ninguém perde a sua personalidade quando entra para a Obra; que a diversidade, o são pluralismo, é uma manifestação de bom espírito. Atuai, pois, por vossa conta, que ninguém vo-lo impedirá. O Opus Dei respeita totalmente o modo de ser de cada um dos seus filhos. Nós perdemos a liberdade relativamente, sem a perder, porque nos dá na gana. Essa é a razão mais sobrenatural: porque nos dá na ga- na, por amor.
ii Segundo o espírito e os modos específicos do Opus Dei, o acompanhamento espiritual dos membros é feito, em parte, através dos conselhos que são dados na confissão, sendo por isso coerente recorrer a sacerdotes com o mesmo espírito; mas cada um tem, evidentemente, a liberdade de se confessar com quem desejar, como São Josemaria recorda um pouco mais à frente, no nº 85 (N. do E.).
Lecionário Romano, I Domingo da Quaresma, salmo (Sl 90, 1-4).
* Expressão equivalente a «ou anda ou sai da frente» (N. do
T.).
Lecionário Romano, I Domingo da Quaresma, salmo (Sl 90, 14).
Documento impresso de https://escriva.org/pt-br/book-subject/en-dialogo-con-el-se%C3%B1or/28512/ (19/11/2025)