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Uma humildade sem caricaturas

«Vamos até Belém ver o que lá aconteceu e o que o Senhor nos manifestou»16. Chegámos, filhos, em bom momento, porque esta é uma noite muito má para as almas. Uma noite na qual as grandes luminárias, que deviam irradiar luz, difundem trevas; em que os que deviam ser sal para impedir a corrupção do mundo estão insípidos e, por vezes, publicamente podres.

Não é possível deixar de sofrer ao considerar estas calamidades. Estou certo, porém, filhas e filhos de minha alma, de que, com a ajuda de Deus, saberemos tirar delas abundante proveito e paz fecunda. Porque insistiremos na oração e na penitência. Porque crescerá em nós a certeza de que tudo se resolverá. Porque alimentaremos o propósito de corresponder fielmente, com a docilidade dos bons instrumentos. Porque aprenderemos, neste Natal, a não nos afastarmos do caminho que o Senhor nos indica em Belém: o caminho da humildade verdadeira, sem caricaturas. Ser humilde não é andar sujo nem desleixado, nem ser indiferente ao que acontece à nossa volta, num contínuo abandono de direitos. Muito menos é apregoar coisas tolas contra si mesmo. Onde há comédia e hipocrisia não pode haver humildade, porque a humildade é a verdade.

Sem o nosso consentimento, sem a nossa vontade, Deus Nosso Senhor não poderá santificar-nos nem salvar- -nos, apesar da sua bondade sem limites. Mais ainda: sem Ele, não faremos nada de proveito. Da mesma forma que se diz que um campo produziu isto, e que aquelas terras produziram aquilo, também se pode afirmar de uma alma que é santa, e de outra que realizou umas quantas obras boas. Mas, na verdade, ninguém é bom senão Deus17; é Ele que torna fértil o campo, que dá à semente a possibilidade de se multiplicar, que confere a uma estaca que parece seca o poder de lançar raízes. Foi Ele que abençoou a natureza humana com a sua graça, permitindo-lhe comportar-se cristãmente, viver de modo a sermos felizes, lutando na expectativa da vida futura, que é a felicidade e o amor para sempre. Humildade, filhos, é saber que «nem o que planta é alguma coisa, nem o que rega, mas só Deus, que é quem dá o incremento»18.

Que nos ensina o Senhor de todas as coisas, o Dono do Universo? Nestes dias de Natal, as canções natalícias de todos os países, tenham ou não muita tradição cristã, cantam ao Rei dos reis que chegou. E que manifestações tem a sua realeza? Uma manjedoura! Não tem sequer os detalhes com que rodeamos Jesus Menino de amor nos nossos oratórios. Em Belém, o nosso Criador não tem nada, tanta é a sua humildade!

Assim como os alimentos são condimentados com sal para não ficarem insípidos, assim também temos de pôr sempre humildade na nossa vida. Filhas e filhos meus – a comparação não é minha, é usada pelos autores espirituais há mais de quatro séculos –, não façais como as galinhas que, mal põem um ovo, atroam os ares com os seus cacarejos. É preciso trabalhar, é preciso fazer o trabalho, intelectual ou manual, mas sempre apostólico, com grandes intenções e grandes desejos – que o Senhor transforma em realidades – de servir Deus e passar desapercebido.

Filhos, assim vamos aprendendo de Jesus, nosso Mestre, a contemplá-lo recém-nascido nos braços de sua Mãe, sob o olhar protetor de José, um homem tão de Deus que foi escolhido pelo Senhor para Lhe fazer as vezes de pai na Terra. Ele defende a vida do recém-nascido com o seu olhar, com o seu trabalho, com os seus braços, com o seu esforço, com os seus meios humanos.

Vós e eu – nestes momentos em que crucificam Jesus Cristo de novo tantas vezes, nestas circunstâncias em que parece que os povos da antiga cristandade estão a perder a fé, desde o vértice até a base, como dizem alguns –, vós e eu devemos empenhar-nos muito em nos parecermos com José, na sua humildade e também na sua eficácia. Não vos enche de alegria pensar que podemos como que proteger Nosso Senhor, o nosso Deus?

Notas
16

Lc 2, 15.

17

Lc 18, 19.

18

1Cor 3, 7.

Referências da Sagrada Escritura
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