36
Um jogo divino
E chegou o dia 2 de outubro de 1928. Eu estava a fazer uns dias de retiro, porque tinha de os fazer, e foi então que o Opus Dei veio ao mundo. Ainda ressoam aos meus ouvidos os sinos da igreja de Nossa Senhora dos Anjos, festejando a sua Padroeira. O Senhor, «ludens [...] omni tempore, ludens in orbe terrarum»3, que brinca connosco como um pai com os seus filhos pequenos, embora já não sejamos criaturas de pouca idade, vendo a minha resistência e aquele trabalho entusiasta e débil ao mesmo tempo, deu-me a aparente humildade de pensar que poderia haver no mundo coisas que não se diferenciassem do que Ele me pedia. Era uma cobardia pouco razoável; era a cobardia do comodismo, e a prova de que não me interessava ser fundador de nada...
Na altura, não era melhor do que sou agora; era um pobre homem. Não podia haver jamais da minha parte, enquanto isto acontecia, algo que, nem de longe, pudesse parecer coisa minha. Era um amor, uma prova do amor de Deus, que saía dos trilhos da providência ordinária – porque houve intervenções extraordinárias, quando foi necessário; se eu dissesse o contrário, mentiria –, e que eu recebia com medo. Quando isso acontecia, sentia imediatamente aquele sou Eu. Com a minha cabeça, quando examinava friamente a situação, não via ali nada que fossem nervos: era uma coisa de Deus; e dirigia-me tranquilamente – embora vacilando – ao meu confessor.
Para que não houvesse dúvidas de que era Ele quem queria realizar a sua Obra, o Senhor servia-Se de coisas externas. Eu tinha escrito: Nunca haverá mulheres – nem a brincar – no Opus Dei. E, poucos dias depois, o 14 de fevereiro; para que se visse que não era coisa minha, mas contra a minha inclinação e contra a minha vontade.
Eu ia a casa de uma senhora de oitenta anos, que se confessava comigo, celebrar missa num pequeno oratório que ela tinha. E foi aí, depois da comunhão, na missa, que a secção feminina veio ao mundo. Depois, a seu tempo, fui falar com o meu confessor, que me disse: «Isto é tão de Deus como o resto».
Essas intervenções do Senhor eram coisas que me comoviam, que me perturbavam, que me levavam – apesar das quatro cadeiras, ou talvez seis, de Sagrada Escritura que fiz, com as melhores classificações – a ignorar, naquele momento, tudo o que diz o Evangelho. Ai, meu Deus, isto é o demónio! Em certa ocasião, fui de Santa Isabel até casa da minha mãe para ver o que estava escrito no Evangelho. E encontrei tudo exatamente...
Quando estava roído de preocupações, ante o dilema de passar ou não de um lado para o outro durante a guerra civil espanhola, no meio daquela perseguição, para fugir dos comunistas, tive outra prova externa: a rosa de madeira. Coisas assim. Deus trata-me como a um pobre menino a quem é preciso dar provas tangíveis, mas de modo ordinário.
Assim, por processos muito comuns, Jesus, Senhor Nosso, o Pai e o Espírito Santo, com o sorriso amabilíssimo da Mãe de Deus, da Filha de Deus, da Esposa de Deus, foram-me empurrando para diante, sendo o que sou, um pobre homem, um burrico que Deus quis tomar pela mão: «Ut iumentum factus sum apud te, et ego semper tecum»4.
Recentemente, houve um sacerdote que criticou Caminho, dizendo que ele não é a lata do lixo, que o corpo há de ressuscitar. Esquece-se do que São Paulo escreve: «Encaro todas as coisas como lixo»5; e, noutra passagem: «Somos tratados como o esterco do mundo, como a escória de todos»6. E das inúmeras vezes em que a Sagrada Escritura ensina que somos de barro, formados do pó da terra7. O Senhor fez-me entender isso muito claramente, de modo que... nem sequer a lata, mas o que há dentro da lata: é isso que me sinto. Perdão, Senhor, perdão.
Documento impresso de https://escriva.org/pt-br/en-dialogo-con-el-se%C3%B1or/36/ (17/11/2025)