Agora que começa o ano

(dezembro de 1970)i

Introdução

Começámos um novo ano, filhas e filhos meus, e gostaria de fazer algumas considerações que vos ajudassem a percorrê-lo com brio. Tenho de vos transmitir um pouco da minha experiência, mas prefiro fazê-lo com umas palavras de São Paulo.

Já vos disseram e já tendes lido, porque é uma coisa bem sabida, que eu não acredito em muitas coisas. Acredito no que é adequado, e nisso acredito com toda a minha alma. E, entre as coisas em que acredito, está a vossa lealdade. Limito-me a repetir o que explicava, no início, aos rapazes de São Rafael: se um de vós me disser alguma coisa, ainda que cem tabeliães me afirmem unanimemente o contrário, eu não acredito nos tabeliães, acredito em vós. Porque sei que tendes fragilidades, como eu tenho, mas que sois leais. E é lógico que que vos fale sempre com esta lealdade.

Uma ginástica espiritual constante

Sabeis que o Padre vos abre o coração com sinceridade. Não acredito no refrão que diz: «Ano novo, vida nova». Em vinte e quatro horas, não se muda nada. Só o Senhor, com a sua graça, pode converter Saulo, num instante, de perseguidor dos cristãos em apóstolo: derruba-o do cavalo, cega-o, humilha-o e manda-o ter com um homem, Ananias1, para lhe perguntar o que deve fazer. E Saulo era um dos grandes de Israel, educado na cátedra de Gamaliel, além de ser cidadão romano. Estais lembrados? «Civis romanus sum!»2. Gosto disto. E gosto de que também vós vos sintais cidadãos do vosso país, com todos os direitos, porque cumpris todos os deveres.

Julgais que, a não ser que ocorra um grande milagre, um homem comodista, que se mexe com relutância e sem agilidade, que não faz ginástica, pode ganhar uma competição desportiva internacional? São Paulo recorre a essa analogia, e eu também. Só lutando repetidamente – vencendo umas vezes, e outras não – em coisas pequenas, que de per si não são pecado, que não têm uma sanção moral muito forte, mas que são debilidades humanas, faltas de amor, faltas de generosidade; só uma pessoa que faz todos os dias a sua ginástica poderá dizer com verdade que, no final, terá uma vida nova. Só quem faz essa ginástica espiritual chegará à meta.

Vede o que diz São Paulo: «Nolite conformari huic sæculo, sed reformamini in novitate sensus vestri, ut probetis quæ sit voluntas Dei bona et beneplacens et perfecta»3: procurai reformar-vos com um novo sentido da vida, procurando identificar as coisas que são boas, de maior valor, mais agradáveis a Deus, mais perfeitas; e segui-as.

Não é isso que acontece no exercício físico constante, no desporto? Mais três centímetros, menos um décimo de segundo. E, de repente, um percalço: a pessoa salta e torce um tornozelo, que desastre! Talvez porque se desleixou, engordou e perdeu a forma. Meus filhos, se essa criatura, se essa alma continuar a lutar, o percalço não tem importância nenhuma. Trata-se, afinal de contas, de uma falta pequena; porque está a fazer exercício para conseguir uma marca melhor, esforçando-se em coisas que são melhores, de maior valor; em coisas que, se não se fizerem, não ofendem Deus, porque não são pecado. Assim, pouco a pouco, quase sem vos aperceberdes, para que a soberba não se intrometa, ir-vos-eis – ir-nos-emos reformando com um novo sentido da vida: «in novitate sensus», e teremos uma vida nova.

Considerai-o, cada um de vós, na sua oração pessoal, e tire cada um uma luz particular: uns, muitas luzes; outros, apenas chispas; um ou outro adormecerá e não tirará nada; mas, quando acordar, verá que sim, que tem luz. Vale a pena, meus filhos, considerar atentamente estas palavras do apóstolo.

Com espírito desportivo

Se, quando vais saltar, saltas como uma galinha, deves assustar-te? Ouve o que diz São Pedro: «Carissimi, nolite peregrinari in fervore, qui ad tentationem vobis fit, quasi novi aliquid vobis contingat»4. Não vos surpreendais por não serdes capazes de saltar, por não serdes capazes de vencer; o que nos é próprio é a derrota! A vitória é da graça de Deus. E não esqueçais que uma coisa é o pensamento e outra muito diferente o consentimento. Isto evita muitas dores de cabeça.

Também evitamos muitas tolices dormindo bem, as horas adequadas; comendo o necessário, fazendo o desporto que puderdes com a vossa idade, e descansando. Mas eu gostaria que pusésseis a cruz em todos os pratos; o que não quer dizer que não comamos; trata-se de comer um bocadinho mais do que não vos agrada, um bocadinho, ainda que seja apenas uma colherzinha de café, e um bocadinho menos do que vos agrada, dando sempre graças a Deus.

Não vos espantará saber que vós e eu – eu tanto como vós, pelo menos, ou talvez mais – temos o fomes peccati, uma inclinação natural para tudo o que é pecaminoso. Insisto em que o pecado da carne não é o mais grave. Há outros pecados maiores, ainda que, naturalmente, se deva dominar a concupiscência. Vós e eu não devemos espantar-nos ao ver que, em todas as coisas – não só na sensualidade, mas em tudo –, temos uma inclinação natural para o mal. Alguns espantam-se, enchem-se de soberba e perdem-se.

Quando eu confessava numa igreja pública – há muitos anos –, costumava fazer como os velhos confessores. Depois de ouvir uma enxurrada de lixo, perguntava: é só isso, meu filho? Porque estou convencido de que, se Deus me soltar da sua mão, qualquer um daqueles pecadores parecerá um pigmeu no mal a comparar comigo, que me sinto capaz de todos os erros e de todos os horrores.

Não vos assusteis com nada. Evitai que haja sustos falando claramente antes; e, se não, depois. Este é um bom pensamento para começar o ano.

Um modo seguro de chegar ao Céu

Minhas filhas e meus filhos, fazei as coisas com seriedade. Retomai agora o caminho. Sou muito amigo da palavra «caminho», porque todos somos caminhantes, com os olhos voltados para Deus; somos viatores, avançamos em direção ao Criador desde que chegámos a este mundo. Uma pessoa que empreende um caminho tem um fim claro, um objetivo: quer ir de um sítio para outro; e, em consequência, emprega todos os meios para chegar incólume a esse fim, com a pressa suficiente, procurando não se desviar por atalhos laterais, desconhecidos, onde há perigo de barrancos e de feras. Vamos caminhar seriamente, meus filhos! Devemos pôr nas coisas de Deus e das almas o mesmo empenho que os outros põem nas coisas da Terra: um grande desejo de ser santos.

Sabemos que não há santos na Terra, mas todos podemos ter desejos eficazes de o ser; e tu, com esse desejo, tens vindo a fazer um grande bem a toda a Igreja, e de modo especial a todos os teus irmãos na Obra. Por sua vez, um pensamento que ajuda muito a fomentar a lealdade é considerar que, se te desencaminhares, causarás um grande dano aos outros.

Deus exige de vós, e exige de mim, o que exige de uma pessoa normal. A nossa santidade consiste nisso: em fazer bem as coisas correntes. Pode ser que, de quando em quando, algum tenha ocasião de ganhar a Laureada5*; mas serão poucas vezes. E – os militares que não se zanguem – reparai que não são os soldados que caem que recebem condecorações; quem as recebe é o capitão: «Il sangue del soldato fa grande il capitano»6**, diz um provérbio italiano. Vós sois santos, fiéis, trabalhadores, alegres, desportistas; e quem fica com os louros sou eu, se bem que os ódios também caem sobre mim. Fazeis-me muito bem, mas não esqueçais, meus filhos, de que os ódios caem sobre o Padre.

Satanás não está contente, porque, com a graça do Senhor, ensinei-vos um caminho, um modo de chegar ao Céu. Dei-vos um meio de arribar ao fim, de uma maneira contemplativa. O Senhor concede-nos essa contemplação, que, ordinariamente, mal sentis. Deus não faz aceção de pessoas; dá-nos os meios a todos.

Talvez o vosso confessor, ou a pessoa que atende a vossa conversa, note alguma coisa que deveis corrigir, e dar-vos-á umas indicações. Mas o caminho da Obra é muito amplo: pode-se ir pela direita ou pela esquerda; a cavalo, de bicicleta; de joelhos, a gatinhar como quando éreis crianças; e também pela valeta, desde que não saiais do caminho.

Deus dá a cada um, dentro da vocação geral para o Opus Dei – que consiste em santificar o trabalho profissional no meio da rua –, o seu modo especial de chegar. Não fomos todos cortados pelo mesmo padrão, como se tivéssemos um molde. O nosso espírito é tão amplo que aquilo que é comum a todos não se perde por causa da legítima diversidade pessoal, do são pluralismo. No Opus Dei, não introduzimos as almas num molde, que depois apertamos; não queremos espartilhar ninguém. Há um denominador comum: querer chegar, e basta.

Um vaso com grampos

Mas vamos continuar com São Paulo. O querer chegar precisa de conteúdo. O Livro da Sabedoria diz que o coração do insensato é como um vaso partido7, dividido em partes, com os pedaços espalhados; a Sabedoria não cabe lá dentro, porque vaza. Com isto, o Espírito Santo quer dizer-nos que não podemos ser vasos partidos; não podemos ter uma vontade orientada para um lado e para o outro, diversamente, como um vaso partido, mas temos de ter uma vontade que aponta para um único fim: «Porro unum est necessarium!»8.

Não vos preocupeis com o facto de essa vontade ser um vaso com grampos. Sou muito amigo dos grampos, porque preciso deles. E a água não foge por haver grampos. Para mim, um vaso quebrado e recomposto é uma maravilha; até é elegante, vê-se que serviu para alguma coisa. Meus filhos, esses grampos são um testemunho de que lutastes, de que tendes motivos de humilhação; mas, se não vos partirdes, melhor ainda.

O que tendes de ter, isso sim, é boa disposição. Escrevi há muitos anos que, quando um vaso contém vinho bom e nele se deita vinho bom, bom vinho fica. O mesmo se passa no vosso coração: tendes de ter o bom vinho das bodas de Caná. Se na vossa alma houver vinagre, ainda que vos deitem vinho bom – o vinho das bodas de Caná –, tudo vos parecerá repugnante, porque o bom vinho se transformará em vinagre dentro de vós. Se reagis mal, falai. Porque não é razoável que uma pessoa que vai ao médico para ser examinada não conte as dificuldades que tem.

As nossas tarefas, os nossos desejos e os nossos pensamentos têm de convergir para um único fim: «Porro unum est necessarium», repito. Já tendes um motivo de luta desportiva. Temos de levar as coisas para Deus, mas como homens, não como anjos. Não somos anjos, de modo que não estranheis as vossas limitações. É melhor que sejamos homens, capazes de merecer e de... fenecer espiritualmente, de morrer. Porque desta maneira perceberemos que todas as coisas grandes que o Senhor quer fazer através da nossa miséria são obra sua. Tal como aqueles discípulos que regressaram pasmados com os milagres que faziam em nome de Jesus9, perceberemos que o fruto não é nosso; que os espinheiros não podem dar uvas. O fruto é de Deus Pai, que foi tão pai e tão generoso que o pôs na nossa alma.

Portanto, não nos devemos admirar, «quasi novi aliquid vobis contingat», como se nos acontecesse uma coisa extraordinária, se sentirmos ferver as paixões é lógico ̶ que isso aconteça, não somos uma parede , nem se ̶ o Senhor operar maravilhas pelas nossas mãos, pois isso também é uma coisa habitual.

Vede o exemplo de São João Batista, quando envia os seus discípulos ao Senhor, para Lhe perguntarem quem é.

Jesus responde-lhes chamando-lhes a atenção para os seus milagres10. Estais lembrados desta passagem? Há mais de quarenta anos que falo dela aos meus filhos, para que nela meditem. O Senhor continua a fazer estes milagres, pelas vossas mãos: gente que não via, e agora vê; gente que não era capaz de falar, porque tinha o demónio mudo, e expulsa-o e fala; pessoas incapazes de se mexerem, paralíticas para coisas que não fossem humanas, que quebram a sua imobilidade, e realizam obras de virtude e de apostolado. Outros que parecem viver, e estão mortos, como Lázaro: «Iam fœtet, quatriduanus est enim»11, e que vós, com a graça divina e com o testemunho da vossa vida e da vossa doutrina, da vossa palavra prudente e imprudente, trazeis para Deus, e recuperam a vida.

Também não vos podeis espantar nesses momentos, porque sois Cristo, e Cristo faz essas coisas por meio de vós, como as fez por meio dos primeiros discípulos. Isto é bom, minhas filhas e meus filhos, porque nos enraíza na humildade, afasta a possibilidade da soberba e nos ajuda a ter boa doutrina. O conhecimento dessas maravilhas que Deus opera por meio do vosso trabalho torna-vos eficazes, fomenta a vossa lealdade e, portanto, fortifica a vossa perseverança.

Ânsias de superação

Acabaremos com um texto do apóstolo: «Æmulamini autem charismata meliora»12: aspirai constantemente aos dons melhores. Meus filhos, vós e eu queremos portar-nos bem, como é do agrado do Senhor. E, se às vezes as coisas nos saem um pouco mal, não tem importância; lutemos, porque a santidade está na luta.

«Æmulamini charismata meliora»: aspirai a coisas melhores, mais gratas a Deus. Não vos conformeis com o que sois diante de Deus, pedi-Lhe com humildade – através da omnipotência suplicante da Virgem Santíssima – que Ele e o Pai nos enviem o Espírito Santo, que deles procede; que, com os seus dons, especialmente com o dom da sabedoria, nos faça discernir as coisas prontamente, para sabermos sempre o que está a correr bem e o que não está a correr bem. Como somos viatores, queremos dedicar-nos ao que presta e evitar o que não presta.

Guardai estes pontos de meditação na cabeça e no coração; hão de fazer-vos muito bem. «Æmulamini charismata meliora». Mais, de olhos postos em Deus! Mais amor, mais espírito de sacrifício! As nossas mães não lamentam a abnegação que esbanjaram por nossa causa; e nós não podemos queixar-nos por experimentarmos um pouquinho a cruz do Senhor; porque já não é um patíbulo, mas um trono triunfador.

Invocai o Espírito Santo e que Deus vos abençoe.

Notas
1

Cf. At 9, 3ss.

2

Cf. At 22, 25: «Sou cidadão romano».

3

Rom 12, 2.

Referências da Sagrada Escritura
Notas
4

1Ped 4, 12: «Caríssimos, não vos perturbeis com o fogo que se ateou entre vós, como se fosse uma coisa estranha».

Referências da Sagrada Escritura
Notas
5

* Referência à Laureada de San Fernando, a mais alta condecoração militar espanhola (N. do T.).

6

** «O capitão é enaltecido pelo sangue do soldado» (N. do T.).

Notas
7

Cf. Ecli 21, 17.

8

Lc 10, 42: «Uma só coisa é necessária!».

9

Cf. Lc 10, 17.

10

Cf. Mt 11, 4-6.

11

Jo 11, 39: «Já cheira mal, já tem quatro dias».

Referências da Sagrada Escritura
Notas
12

1Cor 12, 31.

Referências da Sagrada Escritura
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