O licor da sabedoria

(junho de 1972)iGosto de comparar a nossa alma a um vaso que 94 Deus Nosso Senhor fez para que nele se pudesse guardar um licor, o licor da sabedoria, que é um dom, uma graça muito grande do Espírito Santo. A sabedoria é, minhas filhas e meus filhos, «um hálito do poder divino e uma emanação pura da glória de Deus omnipotente; por isso, não há nela a menor mancha. É a irradiação da luz eterna, o espelho sem mancha da atuação de Deus, imagem da sua bondade. Embora sendo única, tudo pode; permanecendo a mesma, tudo renova; e derrama-se nas almas santas de geração em geração».

Todos os bens

Admirai a formosura do dom da sabedoria, que o

Espírito Santo verte generosamente nos nossos corações

com a sua graça. É um dom tão maravilhoso que «Deus somente ama aquele que habita com a sabedoria»1.

Lembrar-vos-ei o que diz a Sagrada Escritura: que, com a sabedoria, nos vêm todos os bens. Por isso, temos de a pedir ao Espírito Santo, para cada um de nós e para todos os cristãos. «Invoquei o Senhor», lê-se no livro inspirado, «e veio a mim o espírito de sabedoria. Preferi-a aos cetros e aos tronos, e, em comparação com ela, considerei a riqueza como nada. Não a comparei às pedras preciosas, porque, ao lado dela, todo o ouro é como um grão de areia, e a prata como o lodo. Amei-a mais que a saúde e a beleza, e antepus à luz a sua posse, porque o resplendor que dela brota é inextinguível. Todos os bens me vieram juntamente com ela, e trouxe-me nas suas mãos uma riqueza incalculável»2. Podemos dizer de outra maneira: que, com o espírito do Opus Dei, também vêm todos os bens a uma alma, porque este nosso modo de viver, de olhos postos em Deus, sem procurar o anonimato, sem nos importarmos de que nos vejam ou nos ouçam, procurando trabalhar em consciência, com retidão de intenção, é sabedoria.

Se formos leais à vocação, filhas e filhos meus, este espírito de sabedoria, que o Senhor distribui a mãos cheias entre os que O procuram de coração reto, repousará sobre todos nós. Para sermos verdadeiramente sábios – como vos disse muitas vezes –, não temos de ter uma cultura vasta. Se a tiverdes, é ótimo; mas, se não, é igualmente esplêndido, desde que sejais fiéis, porque recebereis sempre a ajuda do Espírito Santo. Além disso, se assistirdes aos meios de formação que a Obra vos proporciona, se aproveitardes os convívios, os cursos anuais e os retiros, alcançareis uma formação teológica tão profunda como a de qualquer bom sacerdote.

Mas não é necessário possuir uma grande ciência. Há um saber a que só se chega com santidade; e há almas obscuras, ignoradas, profundamente humildes, sacrificadas, santas, que têm um sentido sobrenatural maravilhoso: «Eu Te glorifico, ó Pai, Senhor do Céu e da Terra, porque escondeste estas coisas aos sábios e aos prudentes, e as revelaste aos pequeninos»3. Um sentido sobrenatural que, não raramente, está ausente das disquisições arrogantes de pretensos sábios: «Evanuerunt in cogitationibus suis, et obscuratum est insipiens cor eorum, dicentes enim se esse sapientes stulti facti sunt»4: disparataram nos seus pensamentos, e o seu coração insensato ficou cheio de trevas; e, enquanto se jactavam de ser sábios, acabaram em néscios.

Um tesouro divino em vasos de barro

Santidade pessoal: é isto que é importante, minhas filhas e meus filhos, é a única coisa necessária5. A sabedoria está em conhecer a Deus e em amá-lo. Lembrar- -vos-ei, com São Paulo, para que nunca sejais apanhados de surpresa, que trazemos este tesouro em vasos de barro: «habemus autem thesaurum istum in vasis fictilibus»6, num recipiente tão frágil que se pode partir com facilidade, «ut sublimitas sit virtutis Dei et non ex nobis»7: para que se reconheça que toda essa formosura e esse poder são de Deus, e não nossos. Diz também a Escritura Santa que «o coração do insensato é como um vaso quebrado, que não retém a sabedoria»8. Com isto, o Espírito Santo ensina- -nos que não podemos ser crianças nem loucos. Temos de ser fortes, filhos de Deus; entregando-nos ao nosso trabalho, à nossa atividade profissional, com uma presença de Deus contínua, que nos faça viver na perfeição das coisas pequenas. Temos de manter o vaso íntegro, para que esse licor divino não se derrame.

O vaso não se partirá se dirigirmos tudo para Deus, incluindo as nossas paixões. Em si mesmas, as paixões não são boas nem más; compete a cada pessoa dominá-las, e então são boas, nem que seja apenas por esse motivo negativo: «quia virtus in infirmitate perficitur»9 – porque, ao sentirmos essa doença moral, se a vencermos e recuperarmos a saúde, adquirimos maior proximidade de Deus, mais santidade.

Quando algum de vós e eu falamos de vida interior, de proximidade de Deus, há muitas pessoas, muitas – incluindo aquelas que deveriam persuadir as almas a seguir este caminho interior –, que olham para nós como se fôssemos loucos ou comediantes, porque não acreditam de forma nenhuma que se possa alcançar este trato íntimo com o Senhor. Custa-me ter de vos dizer isto, mas é a pura verdade.

Vós sabeis perfeitamente que sim, que se pode e se deve ter essa amizade; que é uma necessidade da nossa alma. Se não tiverdes essa proximidade de Deus, não sereis eficazes nem podereis prestar à Igreja, aos vossos irmãos e a todas as almas o grande serviço que o Senhor e a Obra esperam.

Fazei a vossa oração com estas palavras que agora vos digo. Penetrai no vosso coração, com a luz que o Espírito Santo vos dá, para tirar tudo o que possa quebrar o vaso, tudo o que possa roubar-vos a unidade de vida. Deveis ser pessoas – recordo-vo-lo constantemente – que não se surpreendam quando sentem que têm um animal dentro de si.

A fortaleza da humildade

Parece-me um sonho – a mim, que já vivi tantas coisas – contemplar a realidade esplêndida do nosso Opus Dei e verificar a lealdade dos meus filhos a Deus, à Igreja e à Obra. É lógico que, de vez em quando, alguém fique pelo caminho. Damos a todos o alimento apropriado, mas, ainda que se tome um alimento dieteticamente muito bem escolhido, nem tudo se assimila. Não quer isto dizer que sejam maus. Esses pobrezinhos voltam mais tarde, de lágrimas nos olhos, mas já não se pode fazer nada.

É uma desgraça que pode acontecer-nos a todos, minhas filhas e meus filhos; a mim também. Enquanto estiver na Terra, também eu sou capaz de fazer uma tolice grande. Com a graça de Deus e as vossas orações, e com algum esforço da minha parte, tal nunca me acontecerá.

Não há ninguém que esteja livre deste perigo. Mas, se falarmos, não acontece nada. Não deixeis de falar quando vos suceder alguma coisa que não gostaríeis que se soubesse. Dizei-o imediatamente. É melhor se for antes; mas se não, que seja depois; mas falai. Não esqueçais que o maior pecado é a soberba. Cega muitíssimo. Há um velho refrão ascético que reza assim: «Luxúria oculta, soberba manifesta».

Nunca me cansarei de insistir convosco na importância da humildade, porque o inimigo do amor é sempre a soberba; essa é a pior paixão: é aquele espírito de raciocínio sem razão que lateja no íntimo da nossa alma e que nos diz que somos nós que temos razão e não os outros, coisa que só é verdade por exceção.

Sede humildes, meus filhos. Não com uma humildade de fachada, como a de alguns que costumavam andar encolhidos pela rua. É possível ter uma atitude marcial do corpo e ser muito humilde. Desse modo, tereis uma vontade íntegra, sem fendas; um carácter comple- to e não fraco; esculpido e não esboçado. E o vaso não se quebrará.

Ser leal

Sede fiéis, sede leais! Na vida, tereis muitas oportunidades de não ser fiéis e de não ser leais, porque nós não somos plantas de estufa. Estamos expostos ao frio e ao calor, à neve e às tormentas. Somos árvores que às vezes se enchem de pó, porque estão expostas a todos os ventos, mas que ficam limpas, lindas, quando a graça de Deus cai sobre elas como a chuva. Não vos assusteis com nada. Se não fordes soberbos – repito –, seguireis em frente, sempre!

E como fareis bem as coisas, para corresponder ao amor desta bela mãe que é a Obra, para ser leais? É muito fácil, muito fácil. Em primeiro lugar, tendes de ser dóceis, sem protestar, porque não vos conheceis a vós próprios. Eu já fiz setenta anos, e ainda não me conheço bem, quanto mais vós... Por onde andará o vosso conhecimento próprio!

A mim, não me fazem a correção fraterna, mas há dois irmãos vossos10ii que me dizem com muita clareza o que lhes parece oportuno, e eu fico-lhes agradecido com toda a minha alma. Praticai a correção fraterna! É um modo delicadíssimo de nos amarmos, se observarmos as condições que foram estabelecidas para não ser incómoda. É incómoda para quem a faz; pelo contrário, quem a recebe deve agradecê-la, como se agradece ao médico que meteu o bisturi numa ferida infetada, para a tratar.

Depois, fazê-la. Disse-vos inúmeras vezes que ninguém perde a sua personalidade quando entra para a Obra; que a diversidade, o são pluralismo, é uma manifestação de bom espírito. Atuai, pois, por vossa conta, que ninguém vo-lo impedirá. O Opus Dei respeita totalmente o modo de ser de cada um dos seus filhos. Nós perdemos a liberdade relativamente, sem a perder, porque nos dá na gana. Essa é a razão mais sobrenatural: porque nos dá na ga- na, por amor.

Unidade de vida

Sede pessoas retas e lutai, procurando conciliar esses dois irmãos que todos trazemos dentro de nós: a inteligência, com a graça de Deus, e a sensualidade. São dois irmãos que estão connosco desde que nascemos, e que nos acompanharão durante todo o arco da nossa vida.

É preciso conseguir que convivam juntos, ainda que se oponham um ao outro, procurando que o irmão superior, a inteligência, arraste consigo o inferior, os sentidos. A nossa alma, pelos ditames da fé e da inteligência, e com a ajuda da graça de Deus, aspira aos dons melhores, ao paraíso, à felicidade eterna. E é também para aí que temos de conduzir o nosso irmão mais novo, a sensualidade, para que goze de Deus no Céu.

Que esta unidade de vida seja o resultado da bondade do Senhor com cada um e com a Obra inteira, e um efeito da vossa luta pessoal. Nunca foi melhor altura para recordar que a paz é uma consequência da guerra, dessa guerra maravilhosa que travamos contra nós mesmos, contra as nossas más inclinações. Uma guerra que é uma guerra de paz, porque procura a paz.

Perdemos a serenidade quando a nossa vida não é dirigida pela inteligência, com a graça divina, mas pelas forças inferiores. Não vos assusteis quando vos achardes monstruosos, com tendência para cometer todo o tipo de atrocidades! Com a ajuda do Senhor, chegaremos ao fim seguros, com essa paz – repito – que é uma consequência da vitória. Um triunfo que não é nosso, porque é Deus quem vence em nós se não levantarmos dificuldades, se fizermos o esforço de estender a nossa mão à mão que se nos oferece do Céu.

Meus filhos, unidade de vida. Luta. Que aquele vaso de que vos falava atrás não se quebre. Que o coração esteja inteiro e seja para Deus. Não nos detenhamos em misérias de orgulho pessoal. Entreguemo-nos de verdade, sigamos em frente, como a pessoa que se encaminha para uma cidade e insiste, um passo após outro, e assim consegue percorrer todo o caminho. Não nos há de faltar a ajuda do nosso Pai Deus.

A maior alegria da minha vida é saber que lutais e que sois leais. Não me importo muito de saber que – nesses pontos que estão longe da muralha principal – caístes de bruços. Já sei que vos levantais e recomeçais com mais empenho. Talvez percamos uma ou outra batalha, mas ganharemos a guerra. E, se formos sinceros, nem as batalhas perdidas se perdem. Antes pelo contrário, cada grampo a mais no nosso barro é como uma condecoração. Por isso, devemos ter a humildade de não os esconder; os vasos de cerâmica consertados com grampos têm, aos olhos de Deus e aos meus olhos, mais graça do que os novos.

Longe dos muros da fortaleza

Sabeis o que eu costumo fazer? O que faz um bom general: travo a luta na vanguarda, longe da fortaleza, em pequenas frentes, aqui e acolá. Tenho uma grande devoção a receber a bênção dos outros sacerdotes, e faço dessas bênçãos como que uma muralha que me protege.

Também eu tenho de lutar, e procuro fazê-lo onde me convém: longe, nas coisas que em si não têm muita importância, que nem sequer chegam a ser faltas se não se cumprirem. Cada um deve sustentar a sua peleja pessoal na frente que lhe compete, mas com santa esperteza.

Enquanto estivermos na certeza da fé completa de Cristo e lutarmos, o Senhor dar-nos-á abundantemente a sua graça e continuará a abençoar-nos; com sofrimentos – que tem de haver sempre, mas não os exagereis, porque em geral são pequenos –, com abundantes vocações em todo o mundo, e com o florescer de obras e atividades apostólicas que exigem muito trabalho e muito espírito de sacrifício. Isto sem contar com o aspeto mais bonito da nossa tarefa, que é aquilo que fazem – cada um por sua conta, espontaneamente – as minhas filhas e os meus filhos, cada um no lugar onde está. Porque os filhos de Deus no seu Opus Dei são luz e fogo, e, muitas vezes, labareda. São algo que queima, são levedura que faz fermentar tudo o que têm ao seu redor.

Não nos enchamos de orgulho nem de arrogância, ainda que o contraste com outras pessoas seja evidente. Vamos agradecer tudo ao Senhor, sabendo que nada disso é nosso. É Deus que no-lo dá porque quer, e também nos envia a sua graça, claro resplendor, para lutarmos. E lutemos de tal maneira que, no meio das nossas misérias, imperfeições e erros pessoais, não saiamos do caminho, nunca quebremos o vaso que o Espírito Santo, com a sua misericórdia, quis encher de sabedoria e de bem.

Para terminar, desejo que isto fique bem gravado em vós: uma grande devoção ao Espírito Santo, «espírito de sabedoria e de inteligência, espírito de conselho e de fortaleza, espírito de ciência e de piedade..., espírito de temor de Deus»11. E, com essa devoção, a convicção de que – se formos dóceis – seremos seus instrumentos. Não com a docilidade de uma coisa inerte, mas com a docilidade da cabeça e do raciocínio, que sabe submeter a sua irmã, a sensibilidade, para a pôr ao serviço de Deus. Assim, estes nossos dois irmãos terão a mesma herança: ser filhos de Deus já na Terra, e gozar do amor no Céu. O nosso coração nunca será um vaso quebrado, e o licor divino da sabedoria embriagar-nos-á em toda a nossa vida: «porque à luz sucede a noite, mas a maldade não triunfa da sabedoria»14.

Notas
1

Sab 7, 28.

2

Sab 7, 7-11.

3

Mt 11, 25.

4

Rom 1, 21-22.

Referências da Sagrada Escritura
Notas
5

Cf. Lc 10, 42.

6

2Cor 4, 7.

7

Ibid.

8

Ecli 21, 17.

9

2Cor 12, 9: «a virtude manifesta-se na fraqueza».

Referências da Sagrada Escritura
Notas
10

ii Eram D. Álvaro del Portillo e D. Javier Echevarría, que o apoiavam nas suas necessidades espirituais e materiais (N. do E.).

Notas
11

Is 11, 2-3. 14 Sab 7, 30.

Referências da Sagrada Escritura
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