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Aquele que permanece agarrado às sarças do caminho ficará por vontade própria, sabendo que será um infeliz por ter dado as costas ao Amor de Cristo. Volto a afirmar que todos nós temos misérias. No entanto, nossas misérias nunca deverão levar-nos a desconsiderar a chamada de Deus, e sim a acolhermos essa chamada, a nos metermos dentro dessa bondade divina, como os guerreiros antigos se metiam dentro de suas armaduras: aquele ecce ego: quia vocasti me!102, aqui estou, porque me chamaste, é a nossa defesa. Não devemos ir contra a chamada de Deus, uma vez que temos misérias; e sim atacar as misérias, uma vez que Deus nos chamou.

Quando chegam a dificuldade e a tentação, o demônio mais de uma vez quer que raciocinemos assim: já que tens esta miséria, é sinal de que Deus não te chama, não podes continuar. Devemos estar atentos à falácia deste raciocínio e pensar: como Deus me chamou, apesar deste erro, com a graça do Senhor irei adiante.

Nossa entrega confere-nos como que um título — um direito, por assim dizer — às graças que convêm para sermos fiéis ao caminho que um dia empreendemos, pois Deus nos chamou. A fé diz-nos que, quaisquer que sejam as circunstâncias pelas quais passemos, essas graças não faltarão se não renunciarmos voluntariamente a elas. Mas nós devemos cooperar: dentro dessa cooperação está o exercício da virtude da fortaleza, e uma parte da fortaleza é a paciência para suportar a prova, a dificuldade, a tentação e as próprias misérias. Aquele que foi provado e se mostrou perfeito terá glória perdurável. Aquele que podia prevaricar e não prevaricou, fazer o mal e não o fez, tem seus bens assegurados no Senhor103.

Desde a eternidade o Criador nos escolheu para esta vida de entrega completa: elegit nos in ipso ante mundi constitutionem104; Ele nos escolheu antes da criação do mundo. Nenhum de nós tem o direito, aconteça o que acontecer, de duvidar de sua chamada divina: há uma luz de Deus, uma força interior dada gratuitamente pelo Senhor, que deseja que, juntamente com a sua Onipotência, esteja a nossa fraqueza; junto à sua luz, as trevas da nossa pobre natureza. Ele nos busca para corredimir, com uma moção precisa da qual não podemos duvidar: porque, junto com milhares de razões que já consideramos noutras ocasiões, temos um sinal externo: o fato de estarmos trabalhando com plena entrega em sua Obra, sem a mediação de um motivo humano. Se Deus não nos tivesse chamado, nosso trabalho com tanto sacrifício no Opus Dei nos tornaria dignos de um manicômio. Mas nós somos homens cordatos, e então há algo físico, externo, que nos assegura que essa chamada é divina: veni, sequere me105; vem, segue-me.

Notas
102

1 Rs 3, 6.9.

103

Eclo 31, 10-11.

104

Ef 1, 4.

105

Lc 18, 22.

Referências da Sagrada Escritura
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