CARTA 2
1. Vendo-os remar com grande fadiga, porque o vento lhes eracontrário, por volta da quarta vigília da noite — de madrugada —, ele veio ao encontro deles caminhando sobre o mar1. Comove-me, filhos queridíssimos, contemplar Jesus ao exercer o seu poder divino e realizar um milagre maravilhoso para ir ao encontro dos seus discípulos, que se cansam remando contra o vento a fim de levar a barca para onde o Senhor lhes indicou.
Nós também cumprimos um mandato imperativo de Cristo, navegando em mar agitado pelas paixões e erros humanos, sentindo às vezes toda a nossa fraqueza, mas firmemente determinados a conduzir ao seu destino esta barca da salvação que o Senhor nos confiou. Perante a força do vento contrário, em algumas ocasiões talvez se levante no fundo do coração a voz da nossa impotência humana: tem misericórdia de mim, ó Deus, porque me perseguem, combatem contra mim e me fazem sofrer constantemente. Meus inimigos me perseguem sem cessar; e são muitos, na verdade, os que me combatem2. Ele não nos abandona e, sempre que foi necessário, fez-se presente, com sua onipotência amorosa, para encher de paz e segurança os corações dos seus: Jesus então falou-lhes, dizendo: ânimo, sou eu, não temais. E Ele entrou na barca com eles, e o vento cessou3.
Desejo fazer-vos sentir, junto com a alegria que vos produz a vossa vocação divina, uma íntima e sincera humildade, que não só é compatível com a esperança e a grandeza de ânimo, mas é a sua melhor defesa e garantia. Porque nem toda segurança é digna de louvor, mas apenas aquela que abandona os cuidados na medida em que deve fazê-lo e nas coisas que não se devem temer. É desta maneira que a segurança é condição para a fortaleza e para a magnanimidade4.
Cada um de nós é como aquele gigante da Sagrada Escritura: a cabeça da estátua era de ouro puro; seu peito e seus braços, de prata; seu ventre e seus quadris, de bronze; suas pernas, de ferro e seus pés, parte de ferro e parte de barro5. Não esqueçamos jamais desta fragilidade do fundamento humano, e assim seremos prudentes — humildes —, e não nos acontecerá o que aconteceu àquela estátua colossal: uma pedra, não lançada pela mão de alguém, desprendeu-se, feriu a estátua nos pés de ferro e de barro, destruindo-os. Então o ferro, o barro, o bronze, a prata e o ouro desintegraram-se todos juntos e se tornaram como o pó da eira no verão: o vento os levou sem deixar vestígios deles6.
Ouvi, meus filhos, o que o Espírito Santo nos diz por meio de São Paulo: aquele que pensa estar firme, vigie para não cair. Não tivestes nada além de tentações humanas e ordinárias; mas fiel é Deus, que não permitirá que sejais tentados acima de vossas forças, mas fará com que aproveiteis a própria tentação para que possais sustentar-vos7.
A alma se endeusa: sua nova vida contrasta tanto com a anterior e com aquela que muitas vezes encontra ao seu redor! A fé nos diz que uma alma em estado de graça é verdadeiramente uma alma divinizada: Deus nos deu as grandes e preciosas graças que havia prometido, para vos tornar por meio delas participantes da natureza divina8. Este conceito teologal do homem está quase tão longe do conceito puramente humano e natural quanto Deus está distante da humanidade. Somos homens, de carne e osso, não anjos. Mas também no corpo, pelo influxo da alma em graça, essa divinização redunda como antegozo da ressurreição gloriosa.
E ousarei dizer: porque sou santo? Se eu dissesse santo no sentido de santificador e não necessitado de ninguém para me santificar, seria soberbo e mentiroso. Mas se entendermos por santo o santificado de acordo com aquelas palavras: sede santos, porque eu sou santo; então ouse também o Corpo de Cristo, até o último homem que clama dos confins da terra, com sua Cabeça e sob sua Cabeça, e diga audazmente: porque eu sou santo9.
Não vos posso ocultar, meus filhos, meu temor de que em algum caso esse endeusamento, sem uma base profunda de humildade, possa causar presunção, corrupção da verdadeira esperança, soberba e — mais cedo ou mais tarde — o colapso espiritual diante da experiência inesperada da própria fraqueza.
Costumo dar o exemplo do pó que é levantado pelo vento até formar lá no alto uma nuvem dourada, porque reflete os raios do sol. Da mesma forma, a graça de Deus nos eleva, e reverbera em nós toda aquela maravilha de bondade, de sabedoria, de eficácia, de beleza, que é Deus. Se tu e eu sabemos que somos pó e miséria, pouquinha coisa, o Senhor acrescentará o resto. É uma consideração que preenche a minha alma.
Mas endeusamento sem humildade? Péssimo! E, se o endeusamento for corporativo, pior! Porque Tu, Senhor, salvas o povo humilde e humilhas o soberbo10.
Nas jornadas da vida interior e nas do trabalho espiritual, o Senhor concede aos seus apóstolos esses tempos de bonança, e os elementos, as misérias próprias e os obstáculos do ambiente emudecem: a alma desfruta, em si mesma e nos outros, da formosura e do poder do divino e se enche de contentamento, de paz, de segurança em sua fé ainda vacilante. Especialmente aos que estão começando, o Senhor costuma levá-los — talvez durante anos — por esses mares menos tempestuosos, para os confirmar em sua primeira decisão, sem exigir deles de início o que ainda não podem dar, porque são sicut modo geniti infantes11, como crianças recém-nascidas.
Trata-se de um endeusamento mau se ele cega, se não mostra com evidência que temos pés de barro, pois a pedra de toque para distinguir o endeusamento bom do mau é a humildade. Por isso, é bom desde que não se perca a consciência de que esta divinização é um dom de Deus, uma graça de Deus; é mau quando a alma atribui a si mesma — às suas obras, aos seus méritos, à sua excelência — a grandeza espiritual que lhe foi dada.
Humildes, humildes! Porque sabemos que em parte somos feitos de barro e conhecemos um pouco da nossa soberba e das nossas misérias... e não conhecemos tudo. Que possamos descobrir o que prejudica a nossa fé, a nossa esperança e o nosso amor!
Aqueles que têm o afã de ser santos alcançam essa humildade de duas maneiras. Uma delas ocorre quando aquele que se esforça por exercitar a piedade está em plena experiência espiritual e, por causa da fraqueza do corpo, ou pela ação dos que desejam o mal dos que praticam a virtude, ou por causa dos maus pensamentos que o assaltam, vê a si mesmo com mais modéstia e submissão. A outra maneira, ao contrário, ocorre quando a inteligência é iluminada pela graça santa, com profundidade e plenitude: então a alma possui uma espécie de humildade natural. Tornada mais plena e rica pela graça divina, ela já não pode se erguer com o inchaço do desejo de glória, embora sempre cumpra plenamente os mandamentos de Deus; antes, se comporta como inferior a todos, com um relacionamento cheio de submissão e de divina modéstia12.
Para fazer os alicerces de um edifício, às vezes é preciso cavar muito, chegar a uma grande profundidade, fazer grandes suportes de ferro e afundá-los até que se apoiem sobre rocha. Mas não há necessidade disso quando se encontra logo um terreno firme. Para nós a rocha é esta: piedade, filiação divina, abandono nas mãos de Deus, sinceridade e manter a mente na constante realidade da vida ordinária: eu te amo, Senhor, fortaleza minha. O Senhor é a minha rocha, o meu refúgio e o meu libertador13.
É o próprio Jesus Nosso Senhor que nos diz: quem ouve a minha doutrina e a põe em prática será como um homem sensato, que alicerçou sua casa sobre a rocha; e caíram as chuvas, e os rios transbordaram, e sopraram os ventos e arremeteram com ímpeto contra aquela casa, que não foi destruída, porque estava fundada sobre pedra. Mas quem ouve a minha doutrina e não a pratica será como um homem louco, que construiu a sua casa sobre areia; e caíram as chuvas, e os rios transbordaram, e os ventos sopraram e arremeteram contra aquela casa, que desabou, e sua ruína foi grande14.
Sinto-me agora impelido, meus filhos, a fazer algumas considerações que vos ajudarão a edificar sobre uma profunda e sincera humildade, porque infeliz é aquele que despreza a sabedoria e a instrução; sua esperança é vã, seus trabalhos infrutíferos e suas obras inúteis15; mas, ao contrário, o Senhor deu aos santos a recompensa de seus trabalhos, guiando-os por um caminho maravilhoso, e foi para eles sombra durante o dia e luz das estrelas à noite16.
Dizia-vos que há, ao longo desta navegação da nossa vida, tempos de bonança — interna ou externa — até mesmo prolongados; mas só no Céu a paz é definitiva, a serenidade é completa. Jesus Cristo disse: não deveis pensar que vim trazer paz à terra: não vim trazer a paz, mas a guerra17.
Um homem vai se fazendo pouco a pouco e nunca chega a fazer-se por completo, a realizar em si mesmo toda a perfeição humana de que a natureza é capaz. Em certo aspecto, pode até se tornar o melhor em relação a todos os outros e, talvez, ser insuperável naquela atividade natural particular. No entanto, como cristão, seu crescimento não tem limites: sempre pode crescer em caridade, que é a essência da perfeição. Porque a caridade, segundo a sua própria razão específica, não tem limite em seu aumento, sendo como é uma participação na caridade infinita, que é o Espírito Santo. Também a causa do aumento da caridade — isto é, Deus — é infinita em seu poder. Da mesma forma, também não se pode estabelecer termo para esta melhora por parte do sujeito: porque sempre, à medida que cresce a caridade, cresce também a capacidade de aperfeiçoamento ulterior. Portanto, deve-se concluir que nesta vida não se pode fixar previamente um limite para o aumento da caridade18.
Ouvi o testemunho de Paulo: não é que eu já tenha alcançado tudo, ou que já seja perfeito; mas prossigo em minha carreira para ver se alcanço o que me foi destinado por Jesus Cristo19. São Paulo era um caminhante perfeito, e por isso mesmo sabia que não havia alcançado a perfeição à qual esse caminho conduzia20. Não vos surpreenda, portanto, que eu vos diga com Santo Agostinho: corramos, prossigamos, estamos no caminho; que a venturosa segurança das coisas passadas não nos torne menos diligentes em relação àquelas que ainda não alcançamos21.
Alta é a meta para a qual Jesus nos chama: inatingível, até o final do caminho da vida. Sempre se pode tender a mais, e quem não avança, retrocede; aquele que não cresce, mingua. Aqueles que me comem, lê-se no Eclesiástico, ainda terão fome; e aqueles que me bebem ainda terão sede22.
Além disso, não podemos esquecer que trazemos dentro de nós um princípio de oposição, de resistência à graça: as feridas do pecado original, talvez pioradas por nossos pecados pessoais. Opor-se-ão à tua fome de santidade, meu filho, em primeiro lugar, a preguiça, que é a primeira frente em que tens de lutar; depois, a rebeldia, o não querer carregar sobre os ombros o jugo suave de Cristo, um desejo louco, não de santa liberdade, mas de libertinagem; a sensualidade e, sempre — mais disfarçadamente, com o passar dos anos —, a soberba; e, depois, toda uma fileira de más inclinações, porque nossas misérias nunca vêm sozinhas. Não queremos nos enganar: teremos misérias. Quando envelhecermos também: as mesmas más inclinações de quando tínhamos vinte anos. E a luta ascética será igualmente necessária, e teremos de pedir ao Senhor que nos dê humildade. É uma luta constante. Militia est vita hominis super terram23. Mas a paz está precisamente na guerra. A paz é consequência da vitória!
Meus filhos: não tenhais vergonha de ser miseráveis; não vos acovardeis por terdes no coração o fome peccati, a matéria apropriada para alimentar o fogo do pecado. Não vos assusteis, porque o justo cai sete vezes, e outras tantas se levanta24. Em nossa luta espiritual não faltarão fracassos. Mas, diante dos nossos equívocos, diante do erro, devemos reagir imediatamente, fazendo um ato de contrição, que virá ao nosso coração e aos nossos lábios com a rapidez com que o sangue chega à ferida, combatendo eficazmente o corpo estranho, o germe de infecção.
Asseguro-vos, diz o Senhor Deus, que não me alegro com a morte do ímpio, mas com que ele se afaste do seu caminho e viva. Convertei-vos dos vossos maus caminhos: por que insistis em morrer, casa de Israel? Tu, pois, filho do homem, dize também aos filhos do teu povo: a justiça do justo não o salvará no dia em que pecar, e a impiedade do ímpio não o estorvará no dia em que se converter da sua iniquidade, assim como o justo não viverá por sua justiça no dia em que pecar25.
É lógico, por outro lado, que sintamos a atração, não já do pecado, mas dessas coisas humanas nobres em si mesmas, que abandonamos por amor a Jesus Cristo, sem que por isso tenhamos perdido a inclinação a elas. Porque tínhamos esta tendência, a dedicação de cada um de nós foi um dom de si, generoso e desprendido; por preservarmos essa entrega, a fidelidade é uma doação contínua: um amor, uma liberalidade, um desprendimento que perdura, e não simplesmente o resultado da inércia. São Tomás diz: eiusdem autem est aliquid constituere, et constitutum conservare26. A mesma coisa que deu origem à tua entrega, meu filho, haverá de conservá-la.
O reino dos céus é semelhante a um homem que semeou boa semente em seu campo27. O campo de Deus é o mundo inteiro; e também o é, de maneira especial, a tua alma. Mas, além disso, como somos filhos de Deus, esse campo do nosso Pai é também campo nosso. O Senhor deixou para vós e para mim o mundo inteiro como herança. Pensai no que isso supõe em termos de divinização, de grandeza, de responsabilidade.
Mas quando os homens adormeceram, veio o seu inimigo e semeou joio no meio do trigo, e foi embora28. O inimigo de Deus: as pessoas têm medo de falar sobre as intervenções, sobre as ciladas desse inimigo de Deus, Satanás. Digo-vos que temos de pensar, necessariamente, em que o diabo age. Tenho muita devoção em rezar, ao pé do altar: Sancte Michaël Archangele, defende nos in proelio: contra nequitiam et insidias diaboli...29. Para que nos liberte da influência diabólica em tantas coisas pessoais e alheias.
Cum autem dormirent homines... Não se deve perder nem uma palavra de tudo o que o Senhor nos diz. Porque, em nossa vida pessoal, por acaso não é sono, um mau sono, o que nos faz desperdiçar a boa semente da doutrina e da vida santa? Então, devemos estar vigilantes. Custos, quid de nocte?30 Sentinela, alerta! Devemos estar vigilantes, devemos ouvir o grito de alarme e repeti-lo aos outros. Não podemos adormecer, porque senão, no meio do que é bom, virá o mal: vigiai e orai, para não cairdes em tentação31.
Tendo crescido o trigo e brotado a espiga, descobriu-se também o joio32. Divina pedagogia a das parábolas! Luminosas e claras, para almas simples; ininteligíveis, para os complicados e indóceis: por isso os fariseus não as compreendem. O semeador, o campo, o inimigo, o joio... Aproxima-te mais de Cristo e pede-lhe que te explique a parábola — edissere nobis parabolam!33 — na intimidade da tua oração.
Diz ao Senhor que queres empregar todos os meios. Quando vires que não soubeste empregá-los, que adormeceste – triste coisa é esse sono! —, será tempo de reagir, com a graça de Deus. É verdade que o nosso abandono não tem origem na falta de amor, mas na fraqueza. Por isso, devemos dizer imediatamente ao Senhor: de agora em diante eu serei forte, contigo. As derrotas são minhas; as vitórias, tuas. Não quero que haja mal no mundo: o campo será arado e receberá o cuidado necessário, com a semente generosamente semeada. Livra-me dos meus inimigos, ó Senhor, pois recorro a ti. Ensina-me a fazer a tua vontade, porque tu és o meu Deus34.
Descarregando-nos de todo peso e das amarras do pecado, corramos com determinação até o fim do combate que nos é proposto, tendo sempre os olhos fixos em Jesus, autor e consumador da fé35. Teremos dificuldades: mas conhecemos os meios para lutar e vencer as inclinações da pobre natureza humana; empreguemo-los e confiemos no Senhor, nosso Salvador.
Sede otimistas. O próprio São Paulo, em sua epístola aos filipenses, nos dirá: gaudete in Domino semper: iterum dico: gaudete36; vivei sempre alegres no Senhor; repito-vos: estai alegres. É preciso ver, meus filhos, o lado positivo das coisas. O que parece mais tremendo na vida não é tão negro, não é tão escuro. Se analisardes bem, não chegareis a conclusões pessimistas. Como um bom médico não diz, ao atender um paciente, que tudo nele está podre, peço-vos pelo amor a Jesus Cristo que tenhais confiança. Não afirmeis nada de ruim, sem ver a contrapartida. Um doente não é imediatamente um corpo para o cemitério. Vamos curá-lo, dando-lhe os remédios adequados. Dentro do nosso espírito, temos toda a farmacopeia.
Estejamos sempre serenos. Se formos piedosos e sinceros, não haverá penas duradouras, e aquelas outras que às vezes inventamos desaparecerão por completo, porque objetivamente não o são. Viveremos com alegria, com paz, nos braços da Mãe de Deus, como seus filhos pequenos, pois é isso o que nós somos. De vez em quando, todos nós temos um pequeno conflito em nosso mundo interior, o qual a soberba trata de aumentar para lhe dar importância, para arrancar a nossa paz. Não deis atenção a essas pequenezes. Dizei: eu sou um pecador que ama Jesus Cristo.
Quase todos os que têm problemas pessoais os têm por causa do egoísmo de pensar em si mesmos. É preciso doar-se aos outros, servir os outros por amor a Deus: esse é o caminho para que as nossas penas desapareçam. A maior parte das contradições tem sua origem no fato de nos esquecermos do serviço que devemos aos outros homens e de nos ocuparmos demais do nosso eu. Entregar-se ao serviço das almas, esquecendo-se de si mesmo, tem tal eficácia que Deus recompensa com uma humildade cheia de alegria.
E sem mentalidade de vítima. Só há uma Vítima: Cristo Nosso Senhor na Cruz. Necessitamos de calma e espírito de serviço. Todas as coisas se fazem por vossa causa, para que a graça espalhada abundantemente sirva para aumentar a glória de Deus, por meio das ações de graças que muitos lhe tributarão. Por isso não desmaiamos; pelo contrário, embora em nós o homem exterior vá desmoronando, o interior vai se renovando dia após dia. Porque as aflições, tão breves e tão leves, da vida presente produzem em nós o peso eterno de uma glória sublime e incomparável, e assim não fixamos os olhos nas coisas visíveis, mas nas invisíveis; porque as que se veem são transitórias, e as que se não veem são eternas37.
Talvez tenhamos de superar outro obstáculo: a escuridão em nossa vida interior. Um homem piedoso pode ter seu pobre coração em trevas; e essas trevas podem durar alguns momentos, alguns dias, uma temporada, alguns anos. É a hora de chorar: Senhor, tem misericórdia de mim, porque eu te invoquei o dia todo: porque tu, Senhor, és suave e afável, e muito clemente para com aqueles que te invocam38. É o momento de meditar naquele fato prodigioso que São João nos conta: ao passar, Jesus viu um homem cego de nascença. Seus discípulos perguntaram-lhe: Mestre, que pecados são a causa de que tenha nascido cego: os dele ou os de seus pais? Jesus respondeu: Não é culpa dele ou de seus pais; mas para que as obras de Deus resplandeçam nele39.
Pode ocorrer que a nossa cegueira — se acontecer – não seja consequência dos nossos erros: mas um meio que Deus quer utilizar para nos tornar mais santos, mais eficazes. Em todo caso, trata-se de viver de fé; de tornar nossa fé mais teologal, menos dependente em seu exercício de outras razões que não sejam o próprio Deus. Como alguém que possui pouca ciência confia mais naquilo que ouve de outro que possui muita ciência do que naquilo que lhe parece de acordo com seu próprio entendimento, assim o homem tem muito mais segurança no que lhe disse Deus, que não pode se enganar, do que naquilo que vê com a sua própria razão, que pode se equivocar40.
Dito isto, Jesus cuspiu na terra e, com a saliva, formou lodo e aplicou-o nos olhos do cego, e disse-lhe: vai e lava-te na piscina de Siloé (palavra que significa “enviado”). Então ele foi, lavou-se e voltou enxergando41. Purifica-te e terás novamente — aperfeiçoada — uma visão luminosa, divina.
Deus exalta naquilo mesmo que humilha. Se a alma se deixar levar, se obedecer, se aceitar a purificação com integridade, se viver pela fé, verá com uma luz inesperada, diante da qual pensará depois com espanto que antes era cega de nascença. E, voltando Jesus a falar ao povo, disse: Eu sou a luz do mundo; quem me segue não caminha nas trevas, mas terá a luz da vida42. Em última análise, nossos conflitos também são um problema de humildade. Vê como o publicano ora no templo: ele ficou longe, e por isso Deus se aproximou dele com mais facilidade. Não ousando levantar os olhos ao céu, já tinha consigo aquele que fez os céus... Estar longe, ou não estar, depende de ti. Ama, e ele se aproximará; ama, e ele habitará em ti43.
Talvez algum dia, meu filho, me digas que te sentes cansado e frio quando cumpres as Normas; que te parece estar fazendo uma comédia. Essa comédia é uma grande coisa, filho. O Senhor está brincando conosco como um pai brinca com seus filhos. Deus é eterno, e tu e eu, diante de Deus, somos crianças pequeninas. Ludens in orbe terrarum44: estamos brincando diante de Deus Nosso Pai, e Deus brinca conosco como os pais brincam com seus filhos.
Se em algum momento — perante o esforço, perante a aridez — passar por nossa cabeça o pensamento de que fazemos uma comédia, temos de reagir assim: chegou a maravilhosa hora de fazer uma comédia humana com um espectador divino. O espectador é Deus: o Pai, o Filho, o Espírito Santo, a Santíssima Trindade. E, com Deus nosso Senhor, estarão nos contemplando a Mãe de Deus e os anjos e santos de Deus.
Não podemos abandonar nossa vida de piedade, a nossa vida de sacrifício, a nossa vida de amor. Fazer a comédia diante de Deus, por amor, para agradar a Deus, quando se vive na adversidade, é ser um jogral de Deus. É bonito — não duvides — fazer comédia por Amor, com sacrifício, sem qualquer satisfação pessoal, para agradar o Senhor, que brinca conosco. Viver de amor, sem mendigar compensações terrenas, sem procurar pequenas infidelidades miseráveis, sentir-se orgulhoso e bem pago só com isso: transformar a prosa ordinária em decassílabos de poema heroico.
Obras são amores. Quem recebeu os meus mandamentos e os guarda, esse é o que me ama; e quem me ama será amado por meu Pai e eu o amarei, e eu mesmo me manifestarei a ele45. Se o Senhor nos dá, às vezes, a sua graça e nos faz compreender seus julgamentos incompreensíveis46, que são mais doces que o mel e o favo47, isso não acontece normalmente; devemos cumprir nosso dever não porque ele nos agrade, mas porque temos essa obrigação. Não temos de trabalhar porque nos apetece, mas porque Deus o quer: e então deveremos trabalhar de boa vontade. O amor alegre, que torna a alma feliz, fundamenta-se na dor, na alegria de ir contra as nossas inclinações, para prestar um serviço ao Senhor e à sua Santa Igreja.
Porque foste aceito por Deus, era necessário que a tentação te provasse48. Não te esqueças de que o Senhor é o nosso modelo; e é por isso que, sendo Deus, permitiu que o tentassem, para que nos enchêssemos de determinação, para que — com Ele — tivéssemos a certeza da vitória. Caso sintas a trepidação em tua alma, nesses momentos fala com o teu Deus e diz-lhe: tem misericórdia de mim, Senhor, porque todos os meus ossos tremem, e a minha alma está toda perturbada49. Será Ele quem vai te dizer: não temas, porque eu te redimi e te chamei pelo teu nome: tu és meu50.
Não te perturbes por te conheceres tal como és: assim, feito de barro. Não te preocupes. Porque tu e eu somos filhos de Deus — e este é o bom endeusamento —, escolhidos por uma chamada divina desde toda a eternidade: o Pai nos escolheu, por Jesus Cristo, antes da criação do mundo, para que fôssemos santos em sua presença51. Nós, que somos especialmente de Deus, seus instrumentos apesar da nossa pobre miséria pessoal, seremos eficazes se não perdermos a humildade, se não perdermos a consciência da nossa fraqueza. As tentações nos dão a dimensão de nossa própria fraqueza.
Uma coisa é pensar ou sentir, outra é consentir. A tentação pode ser facilmente rejeitada: até mesmo o mínimo grau de graça é suficiente para resistir a qualquer concupiscência e merecer a vida eterna52. O que não se deve fazer de forma alguma é dialogar com as paixões, que querem transbordar.
Vence-se a tentação com a oração e a mortificação: quando me afligiam, vesti-me de pano de saco, submetendo minha alma ao jejum, e repeti as orações em meu peito53. Aplicai esta convicção em vossa vida de entrega: que, se nós formos fiéis, poderemos fazer muito bem ao mundo. Sede fortes, rijos, íntegros, impassíveis aos falsos atrativos da infidelidade.
Assim podemos dizer, com o salmista: Fui compelido e perturbado, e estava prestes a cair, mas o Senhor me sustentou54. Nós te amamos, Senhor, porque, quando chega a tentação, tu nos dás a ajuda da tua fortaleza — da tua graça — para que sejamos vitoriosos. Agradecemos, Senhor, por permitires que sejamos provados, para que sejamos humildes.
Quero agora prevenir-vos contra um conflito psicológico. Anos atrás dizia-me um bom frade, prudente e piedoso: não se esqueça de que, quando as pessoas chegam aos quarenta anos, os casados querem descasar; os frades, tornar-se sacerdotes; os médicos, advogados; os advogados, engenheiros; e assim por diante: é como uma hecatombe espiritual.
As coisas não acontecem exatamente como dizia aquele religioso, ou ao menos não são uma regra tão geral. Mas quero que meus filhos saibam desse possível mal e que fiquem prevenidos, mesmo que muito poucos passem por essa crise. Se algum dos vossos irmãos passar por essa angústia, tereis de ajudá-lo: rejuvenescendo e revigorando sua piedade, tratando-o com carinho especial, dando-lhe um trabalho agradável. Não acontecerá precisamente aos quarenta anos; mas pode ser aos quarenta e cinco. E será necessário procurar que tenha uma temporada de distensão: e não o faremos com quatro, mas com todos eles.
Sendo muito crianças diante de Deus, não podemos ficar infantilizados. Chega-se à Obra em idade conveniente para saber que temos os pés de barro, para saber que somos de carne e osso. Seria ridículo percebê-lo em plena maturidade de vida: como uma criança de meses, que descobre maravilhada suas próprias mãos e pés. Viemos para servir a Deus, conhecendo toda a nossa pequenez e fraqueza, mas, se nos entregamos a Deus, o Amor impedirá que sejamos infiéis.
Por outro lado, ser desleais, agarrar-se então a um amor da terra, podeis ter a certeza de que isso significaria o início de uma vida muito amarga, cheia de tristeza, vergonha, dor. Meus filhos: afirmai-vos nesta resolução de jamais vender a primogenitura, de não a trocar, com o passar dos anos, por um prato de lentilhas55. Seria uma grande pena dilapidar assim tantos anos de amor sacrificado. Dizei: jurei guardar os decretos da tua justiça e quero cumprir o meu juramento56.
Deus, que sempre recompensa a nossa fidelidade e nos recorda o omnia in bonum57, adverte-nos ao mesmo tempo contra o perigo constante da vaidade, segundo aquelas palavras de Santo Agostinho: Para quem assim ama a Deus, tudo contribui para o seu maior bem: Deus dirige absolutamente todas as coisas para seu proveito, de modo que mesmo aqueles que se desviam e se excedem são levados a progredir na virtude, porque se tornam mais humildes e experientes. Aprendem que no próprio caminho da vida justa devem regozijar-se com alegria e tremor, sem atribuir presunçosamente a si mesmos a segurança com que caminham ou dizer em tempos de prosperidade: nunca mais cairemos58.
Todos nós cometemos erros, embora tenhamos passado anos e anos lutando para os superar. Quando o resultado da nossa luta ascética é o desânimo, é porque somos soberbos. Devemos ser humildes, com desejo de ser fiéis. É verdade que servi inutiles sumus59. Mas, com estes servos inúteis, o Senhor fará grandes coisas no mundo, se fizermos algo da nossa parte: o esforço de levantar a mão para nos agarrarmos à que Deus — com a sua graça — nos estende do céu.
Só os soberbos se surpreendem ao ver que têm pés de barro. Um ato de contrição e de desagravo, e adiante. Reconheçamos que, além das faltas que temos na consciência, haverá outras que estão ocultas aos nossos olhos. Dor de amor, portanto, e — na intimidade dessa dor e dessa humildade — ousaremos dizer ao Senhor que também há muito amor em nossas vidas. Que, se a falta foi real, real é o amor que Ele mesmo deposita em nós, que nos permite servi-lO com todas as forças do nosso coração. Dizei frequentemente, como uma jaculatória, o ato de contrição de Pedro após as negações: Domine, tu omnia nosti; tu scis, quia amo te!60
Diga ao teu Anjo da Guarda — eu digo ao meu — que ele não queira olhar para os nossos erros, pois estamos doloridos, contritos. Que ele leve ao Senhor esta boa vontade que nasce em nossos corações como um lírio que floresceu no monturo.
Não admitais o desânimo por causa das vossas misérias pessoais ou pelas minhas, por causa das nossas derrotas. Abri o coração, sede simples: continuemos trilhando o caminho, com mais carinho, com a força que Deus nos dá, porque Ele é a nossa fortaleza61.
Se amamos a nós mesmos de forma desordenada, há motivo para tristeza: quanto fracasso, quanta pequenez! A posse dessa nossa miséria deve causar tristeza, desânimo. Mas, se amamos a Deus sobre todas as coisas e amamos os outros e a nós mesmos em Deus e por Deus, quantos motivos de alegria! É próprio da humildade que o homem, considerando seus próprios defeitos, não se envaideça. Porém não pertence à humildade, mas sim à ingratidão, o desprezo dos bens que recebeu de Deus. E desse desprezo provêm a preguiça e frouxidão62, a falta de gosto pelas coisas espirituais, a tibieza, que é o sepulcro da vida interior.
Quando vos sentirdes desanimados ao experimentar — talvez de modo particularmente vivo — a vossa própria miséria, será o momento de vos abandonardes por completo, com docilidade, nas mãos de Deus. Dizem que um dia um mendigo foi ao encontro de Alexandre Magno para pedir uma esmola. Alexandre parou e ordenou que o tornassem senhor de cinco cidades. O pobre homem, confuso e atordoado, exclamou: eu não pedia tanto! E Alexandre respondeu: tu pediste como quem és; eu te dou como quem eu sou.
Das profundezas eu te invoco, ó Senhor. Ouve a minha voz: que os teus ouvidos estejam atentos à voz das minhas súplicas. Se guardardes, ó Senhor, a memória dos delitos, quem poderá sobreviver? Porém és indulgente e a tua lei me ajuda a reverenciar-te, Senhor. Em tuas promessas espero, minha alma confia no Senhor. Israel espera pelo Senhor mais do que as sentinelas noturnas esperam pela aurora; porque dEle vem a misericórdia e Sua redenção é copiosa. Ele, portanto, redimirá Israel de todas as suas iniquidades63.
Somos feitos de barro da terra — de limo terrae64 —, de barro de moringa: frágil, quebradiço, inconsistente. Mas já tereis visto como se consertam essas vasilhas de cerâmica que se quebraram em pedaços: com grampos, para que continuem servindo. As vasilhas assim recompostas ficam ainda mais bonitas: possuem uma graça particular. Vê-se que serviram para alguma coisa. Se elas continuam servindo, são esplêndidas. Além disso, se essas vasilhas pudessem raciocinar, nunca teriam soberba. Não há nada de estranho no fato de se terem quebrado, e menos ainda de terem sido consertadas, especialmente se fosse algo insubstituível. E queres dizer-me, meu filho, com o que se pode substituir a alma?
Apesar das nossas pobres misérias pessoais, somos portadores de essências divinas de valor inestimável: somos instrumentos de Deus. E, como queremos ser bons instrumentos, quanto menores e mais miseráveis nos sentirmos com verdadeira humildade, tudo o que nos faltar será provido por Nosso Senhor: o Senhor ordena os passos do homem e se compraz em seus caminhos. Se cair, não ficará prostrado: porque o Senhor lhe estende a sua mão65.
Talvez vos encontreis às vezes — não digo em coisas grandes, mas mesmo que fosse, o que porém não há de acontecer — perante a necessidade de viver em vossa vida pessoal a cena de Naim, narrada por São Lucas: traziam um defunto para ser enterrado, filho único de sua mãe, que era viúva. Então, quando o Senhor a viu, movido de compaixão, disse-lhe: não chores. Aproximou-se e tocou no caixão; e os que o carregavam pararam. Então ele disse: menino, eu te ordeno, levanta-te. Imediatamente, o defunto levantou-se e começou a falar, e Jesus o entregou a sua mãe66.
A vida interior é isso: começar e recomeçar. A vida interior consiste em fazer muitos atos de contrição, de amor e de reparação. Quero louvar-te, ó Senhor, porque me puseste a salvo e não alegraste os meus inimigos com a minha dor. Senhor meu Deus, clamei a ti e tu me curaste. Ó Senhor, tiraste minha alma da sepultura, chamaste-me para a vida dentre aqueles que descem à cova. Cantai ao Senhor, vós, seus santos, e exaltai o seu santo nome67.
Outras vezes, estareis de mãos vazias. Será o momento de recomeçar, de ouvir, como Simão Pedro, o mandato de Cristo que se escuta de novo: navega mar adentro e lança as tuas redes para pescar. Simão respondeu: Mestre, trabalhamos a noite toda e não pescamos nada; no entanto, sob tua palavra, lançarei a rede. E, tendo feito isso, apanharam tão grande quantidade de peixes que a rede se rompia. Então fizeram sinal aos companheiros da outra barca para virem ajudá-los. Eles vieram e encheram as duas barcas a tal ponto que quase afundaram. Vendo isso, Simão Pedro lançou-se aos pés de Jesus, dizendo: afasta-te de mim, Senhor, porque sou um homem pecador68.
Recordando a miséria de que somos feitos, tendo em conta os fracassos causados pela nossa soberba, perante a majestade desse Deus — de Cristo pescador — devemos dizer o mesmo que Pedro: Senhor, sou um pobre pecador. E então — agora a vós e a mim, como outrora ao Apóstolo – Jesus Cristo repete o que também nos disse quando nos colocou em sua rede, ao nos chamar: ex hoc iam homines eris capiens69; doravante serás pescador de homens: com mandato divino, com missão divina, com eficácia divina.
Os teus pés de barro não se quebrarão, porque conheces a tua inconsistência e serás prudente, porque sabes bem que só Deus pode dizer: qual de vós pode me acusar de pecado?70
Quando chega a noite e eu faço o exame, e faço as contas e tiro a soma, a soma é: pauper servus et humilis!71 Eu digo muitas vezes: cor contritum et humiliatum, Deus, non despicies!72 Eu não digo isso com humildade de fachada. Se o Senhor vir que sinceramente nos consideramos servos pobres e inúteis, que nossos corações estão contritos e humilhados, não nos desprezará, mas nos unirá a Ele, à riqueza e ao grande poder de Seu Coração amabilíssimo. E teremos o bom endeusamento: o endeusamento de quem sabe que nada tem de bom que não seja de Deus; que, por si mesmo, nada é, nada pode, nada tem.
Eis-me aqui, então; sou o Deus que anula os teus pecados e não se lembra deles. Vês? Não me lembrarei deles, diz, e isso é característico da clemência; mas tu deves recordá-los, para que deem ocasião de te corrigires. Paulo, embora soubesse disso, sempre se lembrava dos pecados que Deus havia esquecido, a ponto de dizer: não sou digno de ser chamado apóstolo, porque persegui a Igreja de Deus; e: Cristo veio ao mundo para salvar os pecadores, dos quais eu sou o primeiro. Ele não disse: eu era, mas eu sou. Perante Deus os pecados estavam perdoados, mas diante de Paulo a memória deles persistia. O que Deus havia anulado, ele mesmo divulgava... Deus o chama de vaso de eleição, e ele se chama o primeiro pecador. Se ele não havia esquecido seus pecados, pensa como ele se lembraria dos benefícios de Deus73.
São Paulo é conhecido como o último dos apóstolos, mas também sente o mandato de evangelizar. Como tu e como eu. Tu saberás como és. De mim, posso dizer-te que sou uma pobre coisa, um pecador que ama Jesus Cristo. Pela graça de Deus não o ofendemos mais, mas me sinto capaz de cometer todas as coisas vis que qualquer outro homem tenha cometido.
Por isso, se os outros — porque o Senhor, em sua bondade, não os deixa ver a nossa fragilidade — nos consideram melhores do que eles, nos elogiam e mostram desconhecer que somos pecadores, devemos pensar e meditar no fundo do nosso coração, com verdadeira humildade: tamquam prodigium factus sum multis: et tu adiutor fortis74; cheguei a ser, para muitos, como um prodígio; mas bem sei que tu, meu Deus, és a minha fortaleza.
Para que a grandeza das revelações não me envaideça, foi-me dado o estímulo da carne, um anjo de Satanás, para me esbofetear. Três vezes pedi ao Senhor que o afastasse de mim, e ele me respondeu: basta-te a minha graça, porque o meu poder resplandece e alcança o seu fim por meio da fraqueza. Por isso, de bom grado me gloriarei em minhas fraquezas, para que o poder de Cristo faça em mim sua morada. Por isso, alegro-me em minhas enfermidades, nos ultrajes, nas necessidades, nas perseguições, nas angústias pelo amor de Cristo; pois quando sou fraco, então sou mais forte75.
Deus, quando quer realizar uma obra, usa meios desproporcionados, para que se note que a obra é sua. É por isso que vós e eu, que conhecemos bem o peso esmagador da nossa mesquinhez, devemos dizer ao Senhor: ainda que eu me veja miserável, não deixo de compreender que sou um instrumento divino em tuas mãos. Jamais duvidei de que os trabalhos que fiz ao longo da minha vida a serviço da Santa Igreja não foram feitos por mim, mas pelo Senhor, ainda que tenha se servido de mim: o homem não pode atribuir nada a si mesmo que não lhe tenha sido dado do céu76.
Consideremos algumas palavras do Evangelho de São João: Simão Pedro diz-lhe: Senhor, para onde vais? Jesus respondeu: para onde eu vou, tu não podes seguir-me agora; seguir-me-ás depois. Pedro lhe diz: por que não posso seguir-te agora? Eu darei minha vida por ti. Jesus respondeu-lhe: darás a tua vida por mim? Em verdade, em verdade te digo: o galo não cantará sem que me tenhas negado três vezes77.
Por isso, quando com o coração em chamas dissermos ao Senhor que sim, que seremos fiéis a ele, que estamos dispostos a fazer qualquer sacrifício, lhe diremos: Jesus, com a tua graça; minha Mãe, com a tua ajuda. Sou tão frágil, cometo tantos erros, tantos pequenos equívocos, que me vejo capaz — se tu me deixas — de cometer os grandes!
Humildes, meus filhos. Vede que Jesus Cristo beijou nossos pés quando beijou os dos primeiros doze. E Ele é quem é, e nós somos o que somos: pobres criaturas.
Se formos fiéis, se formos humildes, seremos limpos, mortificados, obedientes; seremos eficazes, em todo o mundo: quanto mais humildes, mais eficazes. Não viemos para mandar, mas para obedecer. Viemos para servir, como Jesus, que non veni ministrari, sed ministrare78. Meditai muitas vezes nas palavras do Batista: Illum oportet crescere, me autem minui79; convém que Ele cresça e que eu diminua.
Se queres ser grande, começa por ser pequeno; se queres construir um edifício que chegue até o céu, pensa primeiro em lançar o fundamento da humildade. Quanto maior a mole a ser levantada e a altura do edifício, mais fundo deve ser cavado o alicerce. E enquanto o edifício que se constrói se eleva até o alto, aquele que cava os alicerces desce até o mais profundo. Então o edifício, antes de subir, se humilha, e seu cume é erguido após a humilhação80.
Não estranheis que eu vos diga que amo os vossos defeitos, desde que luteis para os eliminar, porque são motivo de humildade. Disse aquele que é o primeiro literato de Castela que a humildade é a base e o fundamento de todas as virtudes, e sem ela não há nenhuma que o seja81.
Se queremos perseverar, sejamos humildes. Para sermos humildes, sejamos sinceros: sinceros com Deus, com nós mesmos e com aqueles que levam adiante a nossa alma: ut probetis potiora, ut sitis sinceri et sine offensa in diem Christi82; para que saibamos discernir o melhor e nos mantenhamos puros e sem tropeços até o fim. Assim perseveraremos.
Sinceros com Deus: é difícil, porque as pessoas tendem ao anonimato. As pessoas que têm uma função importante na vida pública costumam receber muitas cartas anônimas. Diante de Deus, há muitos homens que também querem permanecer no anonimato, que evitam encontrá-lO na oração pessoal e no exame.
Quantos dos que ousam, na confusão da multidão, lançar um insulto grosseiro, uma vilania, à passagem do grande cortejo emudeceriam acovardados se estivessem sozinhos, frente a frente, a descoberto, assumindo a responsabilidade por seus atos! A insinceridade, que leva ao anonimato e à covardia, a evitar a responsabilidade pelos próprios atos, levanta a mão desconhecida em meio ao tumulto da rua para despedaçar —com uma pedrada — o vitral gótico de uma catedral. A razão cristã, que nos faz amar a liberdade e a responsabilidade pessoal de todos os homens, deve tornar-nos amigos de conhecermos a nós mesmos, a fim de aceitarmos as consequências dos nossos atos livres: o exame de consciência diário dar-nos-á o conhecimento próprio, a verdadeira humildade, e, como consequência, nos obterá do céu a perseverança.
Ó Senhor! tu me examinaste e me conheces, nada do meu ser está oculto a ti... Pois a palavra ainda não está na minha língua, e tu, meu Deus, já sabes de tudo... Onde eu poderia fugir do teu espírito? Para onde fugir da tua presença? Se eu subir ao céu, tu ali estás; se eu descer aos abismos, ali estás presente... Se eu disser: a escuridão me ocultará, a noite será minha luz ao meu redor, tampouco as trevas são densas para ti, e a noite brilharia como o dia, porque para ti as trevas e a luz são iguais83.
Sinceros com nós mesmos. Ainda mais difícil. Já ouvistes dizer que o melhor negócio do mundo seria comprar os homens pelo que realmente valem e vendê-los pelo que acham que valem. A sinceridade é difícil. A soberba violenta a memória, obscurece-a: e encontra uma justificativa para cobrir de bondade o mal cometido, que não se quer retificar; acumulam-se argumentos e razões que vão abafando a voz da consciência, cada vez mais fraca, mais confusa.
Como a vontade tende para o bem ou para o bem aparente, a vontade nunca se moveria para o mal se o que não é bom não aparecesse de algum modo como bom84. As paixões, ou a vontade desviada, forçam o entendimento, fazem-no concordar precipitadamente ou evitar a consideração de certos aspectos contrários, a fim de que abrace, antes, outros que favorecem — que adornam de bondade — aquela inclinação.
Se não se é humilde, profundamente humilde, é fácil chegar a deformar a consciência. Talvez em nossa vida, por fraqueza, possamos agir mal. Ideias claras, consciência clara, porém: o que não podemos é fazer coisas más e dizer que são santas.
Quanto menos humildade, mais graves são as consequências dessa deformação. Porque alguns chegam a não se conformar com essa tranquilização subjetiva da própria consciência; antes, sentem-se arautos de uma nova moral, missionários e profetas dessas reivindicações do mal, ao que difundem seus erros com o fervor de uma nova cruzada e arrastam atrás de si os fracos, que encontram nessas novas doutrinas a justificação de suas obras torpes, sentindo-se assim dispensados da dor da retificação, que — para os humildes — é um dever gozoso.
Não deis ouvidos ao que os profetas vos profetizam; eles vos enganam. O que vos dizem são visões deles, não procede da boca do Senhor. Eles dizem aos que zombam da palavra do Senhor: paz, tereis paz. E a todos aqueles que seguem os maus desejos de seus corações, eles dizem: nenhum mal virá sobre vós... Eles desorientam o meu povo com suas mentiras e suas jactâncias, embora eu não os tenha enviado; não lhes dei nenhuma missão e eles não fizeram bem algum ao meu povo, palavra do Senhor85. Se, depois de ler estas palavras da Escritura Santa, me disserdes que para uma alma comum é difícil discernir, eu vos darei um critério seguro: o amor à Santíssima Virgem, em primeiro lugar; e, depois, a obediência, que é a pedra de toque da verdadeira humildade.
Viemos à Obra para ser santos. Não nos surpreendamos ao ver que ainda estamos longe de sê-lo. Por isso, admitiremos com simplicidade as nossas fraquezas, sem tentar revesti-las de retidão; evitando a soberba, que cega tremendamente e faz ver tudo ao contrário. Meus filhos, sede honestos com vós mesmos, sede objetivos. Desta forma, alcançaremos a eficácia da nossa dedicação. É difícil: é preciso ser humilde, escancarar o coração na direção espiritual, para arejar todos os recantos da alma.
Nossa ascética tem a simplicidade do Evangelho. Não devemos complicar nossas almas, deixando o coração escuro; não podemos entorpecer a ação do Espírito Santo, provocando em nossa vida uma solução de continuidade, que nos arranque — ainda que por pouco tempo — a simplicidade do coração e a sinceridade diante de Deus86.
Se algo nos preocupa, dizemo-lo, estando precavidos contra o demônio mudo. Contai tudo, o pequeno e o grande, e assim vencereis sempre. Não se vence quando não se fala. É compreensível, porque aquele que se cala tem um segredo com Satanás, e é coisa má ter Satanás como amigo.
Sede sinceríssimos: não concedais deixar de dizer absolutamente nada; é preciso dizer tudo. Vede que, caso contrário, o caminho se torna emaranhado; vede que, caso contrário, o que era nada acaba sendo muito. Recordai a história do cigano, que foi se confessar: Padre, acuso-me de ter roubado um cabresto... E atrás havia uma mula; e atrás, outro cabresto; e outra mula, e assim por diante até vinte. Meus filhos, o mesmo acontece com muitas outras coisas: ao ceder no cabresto, depois vem tudo, toda a fileira, vêm depois coisas que envergonham.
Quando pequeno, havia duas coisas que me incomodavam muito: beijar as senhoras amigas de minha mãe, que vinham nos visitar, e vestir roupas novas. Eu me metia debaixo da cama. Depois, minha mãe me dizia com carinho: Josemaria, vergonha só para pecar. Muitos anos depois, percebi que havia naquelas palavras uma razão muito profunda. O diabo tira a nossa vergonha para nos fazer errar e, depois, a devolve para que não contemos nossos erros. Talvez os mesmos erros dos quais outros se vangloriam — exagerando-os — em torno de uma mesa de café.
Sede muito sincero, insisto. E, quando vos acontecer alguma coisa que não quereis que se saiba, dize-o imediatamente — correndo — a quem vos pode ajudar, ao Bom Pastor. Essa decisão é lógica: suponhais que uma pessoa ande com uma grande pedra nas costas e com os bolsos cheios de pedrinhas que, todas juntas, pesam cem gramas. Se situamos essa pessoa em Madri, vamos supor que a distância que ela deve percorrer é a da Puerta del Sol até Cuatro Caminos. Ao chegar ao fim do trajeto, ela não tirará as pedrinhas do bolso uma a uma, ficando — enquanto isso — com a pedra grande às costas. Meus filhos, nós também. A primeira coisa que temos de jogar fora é o que pesa. Comportar-se de outra maneira é uma grande tolice e um princípio de insinceridade.
Não tenhais medo de nada nem de ninguém. Se vierem frutos amargos, dizei-o. Todo o remédio está em Deus: mesmo que tivesse sido um delito grande, enorme. Contai tudo; falai, pois assim se resolve. Aquele que vos ouça não se assustará com nada, porque sabe que também é feito de barro e que é capaz de cometer o mesmo desatino, se for desatino, porque na maior parte das vezes esses sofrimentos procedem de escrúpulos ou de uma consciência mal formada. Mais um motivo para falar claramente.
O medo dos que dirigem a nossa alma é a mais diabólica das tentações. O medo e a vergonha, que nos impedem de ser sinceros, são os maiores inimigos da perseverança. Somos feitos de barro; mas, se falarmos, o barro adquire a fortaleza do bronze. Guardai bem essas ideias, colocai-as em prática, e teremos garantida a tranquilidade no serviço a Deus, pois será muito difícil que nos confundamos.
Meus filhos, viemos à Obra para sermos santos no meio do mundo; para conseguir isso, devemos empregar todos os meios. Quando um doente vai a uma clínica para recuperar a saúde, se pedirem para tirar a roupa porque precisam examiná-lo e ele disser que não; se lhe perguntarem que sintomas tem e ele não quiser dizer... Essa pessoa teria de ser levada não a uma clínica, mas ao manicômio.
Devemos proporcionar a quem tem a missão de nos formar o conhecimento de todas as nossas circunstâncias pessoais; não podemos ter medo de que saibam como somos. Pelo contrário: deve nos dar alegria tornar a nossa alma transparente. Só assim, com esta sinceridade com Deus, convosco e com aqueles que vos formam, alcançaremos — na medida do possível e com a ajuda de Deus — a perfeição cristã, a perfeição humana, a perseverança no bem.
É preciso entregar-se de uma vez, sem reservas, corajosamente. Dizer ao Senhor: ecce ego: quia vocasti me!87 Queimar as naus, para que não haja possibilidade de retrocessos; e essa possibilidade existirá enquanto tivermos na alma recantos a ocultar. Seria uma dor perder o caminho porque nos apetece, talvez por não falar, até quando as coisas parecem já não ter mais remédio. Se falarmos desde o primeiro momento, tudo pode ser remediado com mais facilidade.
Em tempos de serenidade espiritual — de endeusamento bom —, fazei como os engenheiros, que represam as águas limpas que vêm abundantemente da montanha e, quando chega a estiagem, têm um bom reservatório para beber, para regar os campos, para produzir energia elétrica: luz e força. Agora que tendes claridade abundante, que tendes no coração esse desejo de ser fiéis, fazei o firme propósito de buscar essa clareza, invocando Nossa Santíssima Mãe Maria, se um dia o Senhor nos permitir pensar que estamos rodeados de trevas.
Meus filhos: tudo isso que nos propusemos resume-se a sermos leais em nossos pequenos deveres de cada momento, certos de fazer algo muito grande: nossa obrigação de cristãos dedicados a servir ao Senhor nesta vida que se vai, enquanto esperamos pela eterna. Porque toda a carne é feno e toda a sua glória, como a flor do feno: o feno secou e sua flor caiu; mas a palavra do Senhor dura eternamente88.
Pensai também que statum est hominibus semel mori89, que só se morre uma vez. Alguns, na infância; outros, jovens, como vós; outros, em plena maturidade; outros, quando chegaram a envelhecer. Não podemos perder o tempo, que é curto: devemos empenhar-nos verdadeiramente nesta tarefa da nossa santificação pessoal e do nosso trabalho apostólico, que o Senhor nos confiou: devemos gastá-lo fielmente, lealmente, administrar bem —com senso de responsabilidade — os talentos que recebemos, para realizar a Obra de Deus.
O chamado divino exige de nós fidelidade intangível, firme, virginal, alegre, indiscutível, à fé, à pureza e ao caminho: quem perseverar até o fim será salvo90; fiéis até o último momento, e assim seremos santos.
Àquela multidão que segue o Senhor, depois da multiplicação dos pães e dos peixes, Jesus disse: em verdade, em verdade vos digo que me buscais, não por causa dos milagres que vistes, mas porque vos alimentei com aqueles pães até ficardes saciados91. Os milagres que o Senhor realiza têm essa finalidade principal: revelar a sua divindade, para que tenhamos fé. Então, perguntaram-lhe: o que faremos, para nos exercitarmos nas obras de Deus? Jesus respondeu: a obra de Deus é que creiais naquele que Ele vos enviou. Disseram-lhe: que milagres fazes, para que vejamos e acreditemos? Que coisas fazes?92
Se falta a vontade de crer, a disposição humilde da alma, não se veem os prodígios de Deus; a inteligência move-se num plano sem relevo, sem o sentido sobrenatural. Por isso, quando Jesus lhes fala do Pão da Vida, da Eucaristia, continuam pensando no pão da terra. Disseram-lhe: Senhor, dá-nos sempre desse pão93. E quando lhes propõe o mistério em que devem crer, em seus termos precisos, sem possibilidade de tergiversar seu conteúdo sobrenatural objetivo, quando lhes exige o ato de fé teologal — dando-lhes a graça suficiente para crer —, produz-se a debandada. Desde então, muitos de seus discípulos deixaram de segui-lo e não andavam mais com ele. Por isso, Jesus disse aos doze: vocês também querem ir embora? Então, Simão Pedro lhe respondeu: Senhor, a quem iremos? Tu tens palavras de vida eterna. E nós conhecemos e cremos que tu és o Cristo, o Filho de Deus94.
Agora peço, para vós e para mim, a fé de Pedro, quae per caritatem operatur95, que atua animada pela caridade. Uma fé viva, inquebrantável, sem vacilações, sem atenuar o seu conteúdo, sem qualquer sombra, operativa.
Amai a santa pureza, meus filhos: a nossa castidade é uma afirmação gozosa, uma consequência lógica da nossa entrega ao serviço de Deus, do nosso Amor. Poderíamos ter colocado toda a afeição de nosso coração numa criatura; mas, diante do chamado de Deus, nós a colocamos inteira, jovem, vibrante, limpa, aos pés de Jesus Cristo: porque queremos mesmo — que é uma razão muito sobrenatural — corresponder à graça do Senhor.
Permiti-me um aparte: devemos ter grande respeito e veneração pelo estado de casado, que é nobre e santo — sacramentum hoc magnum est96, o matrimônio é um grande sacramento —, e nós o vemos como outro caminho vocacional, como uma maravilhosa participação no poder criador de Deus. Mas é doutrina certa de fé que, em si, é mais alta a vocação a um nobre e limpo celibato apostólico.
Seguiremos em frente, com a graça de Deus, não como anjos — pois isso seria uma desordem, porque os anjos têm outra natureza —, mas como homens limpos, fortes, normais! O que tantos fazem na terra por um lar, o que os nossos pais fizeram com uma vida de fidelidade cristã, façamo-lo nós pelo Amor aos Amores. Amai muito, portanto, a santa pureza, invocai Nossa Mãe do Amor Formoso, Santa Maria, e perseveraremos — alegres e sobrenaturalmente fecundos — neste Caminho divino de nossa Obra.
Se algum dia sentis que esta graça que Deus nos deu está em perigo, não vos deveis surpreender, porque — como já vos disse — somos feitos de barro: habemus autem thesarum istum in vasis fictilibus97: um pote de barro para carregar um tesouro divino. Não te digo isso para agora: falo para o caso de que sintas alguma vez que teu coração vacila. Peço-te então, desde já, uma fidelidade que se manifeste no aproveitamento do tempo e em dominar a soberba, em tua decisão de obedecer abnegadamente, em teu empenho por subjugar a imaginação: em tantos pequenos, porém eficazes, detalhes que salvaguardam, e ao mesmo tempo manifestam, a qualidade da tua entrega.
Se em algum momento a luta interior se tornar mais difícil, será uma boa oportunidade para demonstrar que nosso Amor é verdadeiro. Para aqueles que começaram a saborear de alguma forma a entrega, cair vencido seria como um logro, um engano miserável. Não te esqueças daquele brado de São Paulo: quis me liberabit de corpore mortis huius?98, quem me livrará deste corpo de morte? E ouve em tua alma a resposta divina: sufficit tibi gratia mea!99 Basta-te a minha graça!
O amor de nossa juventude, que com a graça de Deus demos generosamente, não iremos retirá-lo com o passar dos anos. A fidelidade é a perfeição do amor: no fundo de todos os dissabores que podem existir na vida de uma alma entregue a Deus, há sempre um ponto de corrupção e impureza. Se a fidelidade for íntegra e sem quebra, será alegre e incontestável.
Deixai-me insistir: sede fiéis. É algo que trago cravado em meu coração. Se fordes fiéis, o nosso serviço às almas e à Santa Igreja se encherá de abundantes frutos espirituais. Não vos esqueçais — repito — que se pode cometer alguns erros na vida, mas isso não significa nada contra o caminho, nem contra o Amor: significa que, a partir de então, devemos ser mais prudentes. Ninguém pode raciocinar assim: como não posso suportar o peso de determinado dever, não cumprirei nenhum. É uma reação de soberba, é passar do endeusamento ao endiabramento. Corruptio optimi pessima, ensina o velho adágio escolástico: a corrupção do bom é péssima. Só a humildade — com a graça — pode impedir esta corrupção, esse curto passo do melhor ao pior. Quando um espírito imundo sai de um homem, anda por lugares áridos, buscando um lugar para descansar, e não encontrando-o, diz: voltarei para a minha casa, de onde saí. E, vindo até ela, ele a encontra varrida e bem adornada. Então vai e leva consigo outros sete espíritos piores do que ele e, entrando nesta casa, fazem ali morada. Com isto, o último estado daquele homem se torna pior do que o primeiro100.
Abandonar tudo porque se deixou uma coisa para trás é um absurdo, não leva a lugar algum. É a lógica de um louco. Estamos carregando um tesouro, e se — por qualquer motivo — perdemos uma parte no caminho, ainda que considerável, isso não é motivo para jogar fora, com despeito, o que nos resta. A atitude mais sensata será tomar todas as precauções — agora também valendo-nos da nossa experiência — para não perder mais nada. Nas coisas da alma não há nada irremediavelmente perdido: o cuidado humilde e contrito com que procuramos conservar o que nos resta fará com que recuperemos — excedendo-o — o que perdemos. Pois às vezes acontece que a intensidade do arrependimento do penitente é proporcional a um estado de graça maior do que aquele do qual ele caiu pelo pecado. Por isso, o penitente levanta-se algumas vezes com mais graça do que tinha antes101.
Aquele que permanece agarrado às sarças do caminho ficará por vontade própria, sabendo que será um infeliz por ter dado as costas ao Amor de Cristo. Volto a afirmar que todos nós temos misérias. No entanto, nossas misérias nunca deverão levar-nos a desconsiderar a chamada de Deus, e sim a acolhermos essa chamada, a nos metermos dentro dessa bondade divina, como os guerreiros antigos se metiam dentro de suas armaduras: aquele ecce ego: quia vocasti me!102, aqui estou, porque me chamaste, é a nossa defesa. Não devemos ir contra a chamada de Deus, uma vez que temos misérias; e sim atacar as misérias, uma vez que Deus nos chamou.
Quando chegam a dificuldade e a tentação, o demônio mais de uma vez quer que raciocinemos assim: já que tens esta miséria, é sinal de que Deus não te chama, não podes continuar. Devemos estar atentos à falácia deste raciocínio e pensar: como Deus me chamou, apesar deste erro, com a graça do Senhor irei adiante.
Nossa entrega confere-nos como que um título — um direito, por assim dizer — às graças que convêm para sermos fiéis ao caminho que um dia empreendemos, pois Deus nos chamou. A fé diz-nos que, quaisquer que sejam as circunstâncias pelas quais passemos, essas graças não faltarão se não renunciarmos voluntariamente a elas. Mas nós devemos cooperar: dentro dessa cooperação está o exercício da virtude da fortaleza, e uma parte da fortaleza é a paciência para suportar a prova, a dificuldade, a tentação e as próprias misérias. Aquele que foi provado e se mostrou perfeito terá glória perdurável. Aquele que podia prevaricar e não prevaricou, fazer o mal e não o fez, tem seus bens assegurados no Senhor103.
Desde a eternidade o Criador nos escolheu para esta vida de entrega completa: elegit nos in ipso ante mundi constitutionem104; Ele nos escolheu antes da criação do mundo. Nenhum de nós tem o direito, aconteça o que acontecer, de duvidar de sua chamada divina: há uma luz de Deus, uma força interior dada gratuitamente pelo Senhor, que deseja que, juntamente com a sua Onipotência, esteja a nossa fraqueza; junto à sua luz, as trevas da nossa pobre natureza. Ele nos busca para corredimir, com uma moção precisa da qual não podemos duvidar: porque, junto com milhares de razões que já consideramos noutras ocasiões, temos um sinal externo: o fato de estarmos trabalhando com plena entrega em sua Obra, sem a mediação de um motivo humano. Se Deus não nos tivesse chamado, nosso trabalho com tanto sacrifício no Opus Dei nos tornaria dignos de um manicômio. Mas nós somos homens cordatos, e então há algo físico, externo, que nos assegura que essa chamada é divina: veni, sequere me105; vem, segue-me.
Tentemos ser leais ao longo de nossas vidas, e, se em algum momento sentirmos que não o somos, lutemos, peçamos ajuda a Deus, e assim venceremos, pois Deus não perde batalhas. Ponhamos todas as nossas misérias aos pés de Jesus Cristo, para que Ele triunfe: e vereis quão alto fica, e como nos ajudará a divinizar a nossa vida terrena.
A fraqueza humana acompanha-nos até nos melhores momentos, nos momentos mais sublimes de nossa existência. Temos — para que nada mais possa nos surpreender — o testemunho do Santo Evangelho. Na Última Ceia, naquele clima de efusão de amor e confidências divinas, na reunião dos íntimos, dos mais formados, dos prediletos: facta est autem contentio inter eos, quis eorum videretur esse maior106: começaram a discutir, a brigar entre si, sobre quem era o maior, o mais excelente.
Portanto, quando sentirmos em nós mesmos — ou nos outros — qualquer debilidade, não deveremos mostrar surpresa: lembremo-nos daqueles que, com sua indiscutível fraqueza, perseveraram e levaram a palavra de Deus a todos os povos e foram santos. Estamos dispostos a lutar e a caminhar: o que importa é a perseverança.
Constantes, alegres, retificando um pouco a cada dia, como fazem os navios em alto-mar para chegar ao porto. Os santos foram como nós: tiveram a boa vontade e a sinceridade de retificar na sua vida interior, na sua luta: com vitórias e derrotas, que às vezes são vitórias; buscando relacionar-se com Deus, que é esperança, que é fé, que é Amor. Nosso Deus está contente com essa nossa luta, que é um sinal seguro de que temos vida interior, desejo de perfeição cristã.
Lembrai-vos de quando João e Tiago se aproximaram de Jesus e disseram: Mestre, gostaríamos que nos concedesse tudo o que lhe pedirmos. Ele disse-lhes: O que quereis que vos conceda? Concede-nos, eles responderam, que em tua glória possamos sentar um à tua direita e outro à tua esquerda. Jesus respondeu-lhes: Podeis beber o cálice que eu vou beber, ou ser batizado com o batismo com o qual eu vou ser batizado? Eles responderam: Possumus, podemos107. O caminho da Glória passa pela estreiteza da morte. Não sabeis que nós, que fomos batizados em Jesus Cristo, fomos batizados em virtude de sua morte? No Batismo fomos sepultados com Ele, morrendo para o pecado, a fim de que, assim como Cristo ressuscitou dos mortos para a glória do Pai, assim também nós procedamos segundo uma vida nova108.
Meus filhos, digamos com João e Tiago: possumus!Omnia possum in eo qui me confortat109; tudo posso naquele que me conforta. Enchei-vos de confiança, porque aquele que começou a obra a aperfeiçoará110: poderemos se cooperarmos, porque temos assegurada a fortaleza de Deus: quia tu es, Deus, fortitudo mea111.
Nossa pedagogia é feita de afirmações, não de negações, e se reduz a duas coisas: agir com sentido comum e com sentido sobrenatural. Entre outras manifestações dessa pedagogia, há uma que pode ser assim expressa: muita confiança em Deus, confiança nos outros e desconfiança de nós mesmos. Não confieis facilmente no próprio juízo: como o metal precioso precisa ser provado — necessita da pedra de toque —, nós temos de ver se o nosso julgamento é ouro fino — no humano e no sobrenatural — levando em conta o parecer dos outros, sobretudo daqueles que têm graça de estado para nos ajudar. É por isso que devemos ter a boa disposição de retificar o que tenhamos afirmado anteriormente. Retificar não é uma humilhação: é um ato cheio de retidão, que está dentro daquela pedagogia sobrenatural.
O bem sobrenatural de uma só pessoa é melhor do que o bem natural de todo o universo112. Devemos pedir a Deus que coloque sempre essa fé e visão sobrenatural em nossa inteligência, que confira uma hierarquia objetiva às nossas ideias, aos nossos afetos e às nossas obras. É preciso pedir esse critério, porque é um dom de Deus.
Contemplai, comigo, o que escreve São João: Jesus chegou à cidade da Samaria, chamada Sicar, próxima à herdade que Jacó deu a seu filho José. Ali estava a fonte de Jacó. Jesus, cansado da viagem, sentou-se na beira do poço113. É comovente ver o Senhor cansado. Ele também está com fome: os discípulos foram ao povoado vizinho buscar algo para comer. E tem sede: uma mulher samaritana veio tirar água. Jesus disse-lhe: dá-me de beber114. Depois, toda aquela conversa encantadora, em que a alma sacerdotal de Cristo se derrama, solícita, para recuperar a ovelha perdida: esquecendo o cansaço e a fome e a sede. Enquanto isso, os discípulos insistiam com ele dizendo: Mestre, coma. Mas Ele lhes diz: Tenho um manjar para comer que vocês não conhecem. Os discípulos diziam uns aos outros: Será que alguém lhe trouxe algo para comer? Disse-lhes Jesus: A minha comida é fazer a vontade daquele que me enviou, e cumprir a sua obra115.
Jesus Cristo, perfectus Deus, perfectus homo116, apresenta-se à nossa consideração para que fiquemos serenos diante das exigências limpas de nossa pobre natureza, para que saibamos esquecê-las ou — pelo menos — colocá-las em segundo plano diante do bem das almas — de todas as almas —, para nos estimular a dar cumprimento à Obra que Deus nos confiou e que saibamos amar a sua santíssima vontade, alimentando-nos sempre desse desejo.
Uma única palavra do Senhor, e a figueira sem fruto ficou seca até a raiz. Os discípulos ficam maravilhados, e Jesus diz-lhes: tende confiança em Deus. Em verdade vos digo que qualquer um que diga a este monte: Sai daí e lança-te ao mar, não vacilando em seu coração, mas acreditando que tudo quanto disser será feito, assim se fará. Portanto, garanto que tudo o que pedirdes na oração, tende fé em consegui-lo, e vos será concedido117.
A fé será a fonte inesgotável da nossa fecundidade apostólica: do seio daquele que crer em mim manarão rios de água viva, como diz a Escritura118. Mas deve ser — a nossa — uma fé cheia de fidelidade leal ao Magistério do Romano Pontífice.
O Senhor acabara de curar os mudos, os cegos, os coxos, os enfermos e muitos outros que se apresentaram a Ele; e ouvi o que ele diz: tenho compaixão desta multidão, porque já faz três dias que perseveram comigo e não têm o que comer119. O coração de Jesus Cristo está cheio de amor e se compadece daquelas pessoas que o seguem por três dias!
Tende em conta, também, que alguns daqueles homens seguiam o Senhor como quem vai atrás de um curandeiro ou de um homem poderoso da terra, para obter os seus favores ou — não faltam provas, na Sagrada Escritura, desta intenção — ut caperent eum in sermone120, para pegar uma palavra dEle e retorcê-la. Se para aqueles que eram assim, por três dias de perseverança, Jesus realiza o grande milagre da multiplicação dos pães, pensai o que não fará por nós. Nos momentos de dificuldade, quando sentirdes vossa indigência, recorrei com confiança ao Senhor, abandonai-vos em suas mãos e dizei-lhe que o seguimos com amor e sacrifício há mais de três dias.
Crescei na fé, diante dos obstáculos próprios ou alheios. Vede como se comporta o centurião, conforme narra São Lucas: estando já perto da casa, o centurião mandou-lhe dizer por intermédio dos seus amigos: Senhor, não te incomodes com isso, porque eu não mereço que entres na minha casa. Por isso, não me considerei digno de sair pessoalmente para procurar-te; mas dize apenas uma palavra, e meu servo será curado121.
As dificuldades, as contrariedades desaparecem assim que nos aproximamos de Deus na oração. Conversemos humilde e francamente com Jesus, tendo em conta que quem o trata com simplicidade, vai confiante122, e logo se fará a luz, virão a paz e a serenidade e a alegria. E nos sentiremos felizes, mesmo quando ainda se note o barro nas asas. Depois, mortificação, penitência, e esse barro cairá; e voaremos como águias nas alturas da fé e das obras.
Como aquele homem de quem nos fala o Eclesiástico, nós devemos madrugar pela manhã, para dirigir o nosso coração ao Senhor que nos criou, para orar em presença do Altíssimo. Abriremos nossas bocas em oração e rogaremos o perdão pelos nossos pecados; e, se agradar ao Senhor soberano, ele nos encherá com o espírito de inteligência. Como a chuva, o Senhor derramará palavras de sabedoria e em oração louvaremos ao Senhor. Dirijamos nossa vontade e nossa inteligência para meditar nos mistérios de Deus. Publiquemos os ensinamentos de sua doutrina123.
A oração nos dará o endeusamento bom, humilde, santo; e poderemos trabalhar em todos os ambientes, sem nenhum perigo. Da, quaesumus, omnipotens Deus: ut, quae divina sunt, iugiter exsequentes, donis mereamur caelestibus propinquare124: por esse seguimento contínuo e perseverante do divino, o Senhor nos dará a mãos cheias a riqueza de seus dons, a boa divinização. Da nobis, quaesumus, Domine: perseverantem in tua voluntate famulatum; ut in diebus nostris, et merito et numero populus tibi serviens augeatur125. Perseveremos no serviço de Deus e veremos como este exército de paz, este povo da corredenção, cresce em número e em santidade.
Meus filhos, para a frente com alegria, com esforço: nada no mundo nos deterá, desde que sirvamos ao Senhor, porque tudo é bom para os que amam a Deus: diligentibus Deum, omnia cooperantur in bonum126. Na vida tudo tem conserto, menos a morte, e para nós a morte é a vida. Nada tem importância se houver sinceridade, sentido sobrenatural e bom humor: nada está perdido nunca. Barrabás era um homicida e revoltoso, e a Morte de Cristo — vida por Vida — o salva da morte. Dimas era um ladrão, um delinquente: e uma palavra humilde de arrependimento, uma oração simples e confiante, e Jesus — vida por Vida — o salva da morte eterna. Retifica, pois nunca é tarde para retificar; mas retifica imediatamente, meu filho!
Pessoas muito diferentes vêm e virão ao Opus Dei: pessoas de todos os tipos. Algumas chamadas também por volta da undécima hora127, como aqueles trabalhadores da vinha. Dar-me-á grande alegria ver chegar à Obra, chamado por Deus, um homem no fim da sua vida: talvez uma alma que passou anos e anos afastada de Jesus Cristo. Sempre há lugar para um operário de última hora; e — se for fiel — receberá o prêmio da glória, talvez com apenas alguns minutos de amor, atado voluntariamente à cruz de mãos e pés: pois a santidade não está em fazer muito, mas em amar muito. Um grande Amor nos espera no Céu: sem traições, sem enganos: todo o amor, toda a beleza, toda a grandeza, toda a ciência... E sem enjoar: saciar-nos-á sem saciar.
Sempre houve hereges — já existiam durante a vida dos Apóstolos — que tentaram tirar de nós essa esperança. Se pregamos que Cristo ressuscitou dos mortos, como é que alguns de vós estão dizendo que não há ressurreição dos mortos? Porque, se não há ressurreição dos mortos, Cristo também não ressuscitou. Mas, se Cristo não ressuscitou, é vã a nossa pregação e também é vã a nossa fé. Se nós só tivermos esperança em Cristo enquanto durar nossa vida, seremos os mais infelizes de todos os homens128.
Suportemos todas as dificuldades desta nossa navegação no meio dos mares do mundo com a esperança do Céu: para nós e para todas as almas que queiram amar, a aspiração é chegar a Deus: à glória do Céu. Se não, nada de nada vale a pena. Para ir para o Céu, devemos ser fiéis. E, para sermos fiéis, devemos lutar, seguir em frente em nosso caminho, mesmo quando caiamos de bruços alguma vez: com Ele nos levantaremos.
Não estamos sozinhos. Vae soli129: infelizes os que estão sós. Procuremos que não nos falte o senso de responsabilidade, sabendo que somos elos da mesma corrente. Por isso — cada um dos filhos de Deus em sua Obra o deve dizer verdadeiramente — quero que esse elo que sou não se rompa: porque, se me romper, trairei a Deus, a Santa Igreja e os meus irmãos. E nos regozijaremos com a força dos outros elos; ficarei feliz por haver elos de ouro, de platina, cravejados de pedras preciosas. Nenhum filho de Deus está sozinho, nenhum é um verso solto: somos versos de um mesmo poema épico, divino, e não podemos romper essa unidade, essa harmonia, essa eficácia.
Tendes de ser vitoriosos em vossas misérias, tornando os outros vitoriosos. Juntos, me ajudareis a perseverar. Com erros, que todos nós temos e que — quando os reconhecemos, pedindo perdão ao Senhor — tornam-nos humildes e merecedores de dizermos, com a Igreja: felix culpa!130
Assim alcançaremos a serenidade, ajudar-nos-emos a querer e a viver nossa própria santidade e a dos outros; e teremos aquela fortaleza que é a fortaleza das cartas do baralho, que não podem se sustentar sozinhas, mas que, apoiando-se umas nas outras, podem formar um castelo que se mantém em pé. Deus conta com nossas fraquezas, com nossa debilidade e com a debilidade dos outros; mas conta também com a fortaleza de todos, se a caridade nos unir. Amai a bendita correção fraterna, que assegura a retidão do nosso caminhar, a identidade do bom espírito: vai e corrige-o a sós. Se te ouvir, terás ganho o teu irmão131.
Tenhamos um coração grande, para amar todas as criaturas da terra com seus defeitos, com seus modos de ser. Não esqueçamos que, às vezes, é preciso ajudar as almas para que caminhem pouco a pouco; temos de estimulá-las com paciência para que avancem lentamente, de modo que mal percebam o movimento, embora estejam caminhando.
Em nossa semeadura de paz e de alegria será necessário difundir, promover e defender a legítima liberdade pessoal dos homens; o dever que cada homem tem de assumir a responsabilidade que lhe corresponde nas tarefas terrenas; a obrigação de defender também a liberdade dos outros, assim como a própria, e de compreender todos; a caridade de aceitar os outros como são — porque cada um de nós tem culpas e erros —, ajudando-os com a graça de Deus e com garbo humano a superar esses defeitos, para que todos possamos sustentar-nos e portar com dignidade o nome de cristãos.
(a) Existem muitas almas ao vosso redor, e não temos o direito de ser obstáculo ao seu bem espiritual. Temos a obrigação de buscar a perfeição cristã, de ser santos, de não defraudar, não só a Deus pela escolha da qual nos fez objeto, mas também todas essas criaturas que tanto esperam do nosso trabalho apostólico. Também por motivos humanos: inclusive por lealdade, esforçamo-nos por dar bom exemplo. Se um dia tivermos a infelicidade de que as nossas obras não sejam dignas de um cristão, pediremos ao Senhor a sua graça para retificar.
(b) Devemos ser — na massa da humanidade — fermento; e precisamos de santidade: remediar os erros do passado, dispor-nos com humildade de coração a praticar as virtudes, em nossa vida ordinária. Se vivermos assim, seremos fiéis. Que alegria poder dizer, ao chegar ao exame da noite: Senhor, eu não me ocupei de mim mesmo o dia todo, pois estive sempre ocupado em servir a ti, servindo aos outros por Amor a ti!
Sozinhos, nada podemos fazer de proveito, porque teremos cortado o caminho das relações com Deus: sine me nihil potestis facere132; sem mim, nada podeis fazer. Porém, unidos ao Senhor, tudo podemos: omnia possum in eo qui me comfortat133; poderemos tudo naquele que nos confortará, mesmo que tenhamos equívocos e erros, se lutarmos para não os ter.
Certa vez, um conhecido meu — sempre me surpreendo — sonhou que estava num avião a grande altura, mas não dentro, porém sobre a asa: e sofria terrivelmente. Nosso Senhor fazia-lhe compreender que é assim que as almas sem vida interior vão pelas alturas do apostolado, com o perigo constante de vir abaixo, sofrendo, inseguras.
Esta vida é uma luta, uma guerra, uma guerra de paz, que é preciso travar sempre in gaudio et pace. Teremos essa paz e essa alegria se formos homens — ou mulheres — da Obra, o que quer dizer: sinceramente piedosos, cultos — cada um em sua tarefa —, trabalhadores, esportistas na vida espiritual: não sabeis que dos que correm no estádio, mesmo que todos corram, só um ganha o prêmio? Correi, de tal forma que o ganheis. Todos aqueles que têm de lutar na arena observam em tudo uma continência exata, sendo apenas para alcançar uma coroa perecível, enquanto nós esperamos por uma coroa eterna134.
Por isso, somos almas contemplativas, em diálogo constante, relacionando-nos com o Senhor em todas as horas: desde o primeiro pensamento do dia até o último pensamento da noite; porque estamos enamorados e vivemos do Amor, colocamos continuamente o nosso coração em Jesus Cristo Nosso Senhor, chegando a Ele por sua Mãe, Santa Maria, e, por Ele, ao Pai e ao Espírito Santo.
Se em algum momento aparecer a intranquilidade, a inquietação, o desassossego, aproximar-nos-emos do Senhor e lhe diremos que nos colocamos em suas mãos, como uma criança pequena nos braços de seu pai. É uma entrega que supõe fé, esperança, confiança, amor.
Posso dizer que quem cumpre nossas Normas de vida — que aquele que luta para as cumprir —, tanto na saúde como na doença, na juventude e na velhice, quando há sol e quando há tempestade, quando não lhe custa observá-las e quando lhe custa, esse meu filho está predestinado, se perseverar até o fim: estou certo de sua santidade.
Nosso Deus ama as criaturas de tal maneira — deliciae meae esse cum filiis hominum135, minhas delícias são estar com os filhos dos homens — que, se em algum momento não soubemos ser fiéis ao Senhor, o Senhor, sim, esteve pendente de nós. Assim como uma mãe não leva em conta as provas de desafeto do filho tão logo o filho se aproxima dela com carinho, Jesus também não se lembra das coisas que não fizemos bem quando, por fim, nos aproximamos dele com carinho, arrependidos, limpos pelo sacramento da penitência.
Filiação divina, portanto. Com essa crença maravilhosa não perdemos a serenidade: para nos sentirmos seguros; para voltar, se nos desgarramos em alguma escaramuça desta luta diária — mesmo que tenha sido uma grande derrota —, pois por nossa fraqueza podemos nos desgarrar, e de fato nos desgarramos. Sintamo-nos filhos de Deus, para voltarmos a Ele com gratidão, certos de que seremos recebidos por nosso Pai do céu.
O Senhor fala-nos — se o quisermos ouvir, no fundo da nossa alma, por meio das pessoas e dos acontecimentos — como um Pai amoroso; e nos dá, sem espetáculo, a graça conveniente, a fim de termos as forças necessárias, inclusive a energia humana, para terminar as coisas com o mesmo entusiasmo com que as iniciamos. Por isso, o endeusamento que nos leva a perseverar, a viver cheios de confiança, a superar as dificuldades, já não é um grito de soberba. É um grito de humildade: uma forma de demonstrar nossa união com Deus, uma manifestação de caridade; é a nossa própria miséria que nos leva a refugiar-nos em Deus, a nos endeusarmos.
Tratar a Deus, tocar a Deus. Vede como São Lucas nos conta a cura da hemorroíssa. Jesus disse: Quem é que me tocou? Desculpando-se todos, Pedro respondeu com seus companheiros: Mestre, uma multidão de gente te comprime e sufoca e tu perguntas: quem me tocou?136. De Cristo a vida flui em torrentes: uma virtude divina. Meu filho, tu lhe falas, o tocas, o comes todos os dias: o tratas na Santa Eucaristia e na oração, no Pão e na Palavra.
Há muitos anos, presenciei esta cena: um grupo de homens e, entre eles, um com muita fama popular. As pessoas paravam para contemplá-lo. Um menino saiu do meio da multidão, passou a mão na roupa do homem que todos admiravam e voltou com o rosto radiante, gritando: toquei-o!
Nós fazemos mais: temos amizade pessoal com Jesus Cristo. Nesse relacionamento está a base do nosso bom endeusamento. Na Sagrada Eucaristia e na oração está a cátedra na qual aprendemos a viver, servindo a todas as almas com um serviço alegre; a governar, também servindo; a obedecer livremente, querendo obedecer; a buscar a unidade respeitando a variedade, a diversidade, a identificação mais íntima.
Os Atos dos Apóstolos descrevem, em poucas palavras, o ambiente da primeira comunidade cristã: todos perseveravam nas instruções dos Apóstolos e na comunicação da fração do pão e na oração137. Com a Fé, o Pão e a Palavra, perseveraremos, nos chamaremos vitoriosos e teremos todo o amor que nos espera no céu, depois de termos sido felizes na terra e de abrir caminhos de paz no meio do mundo para tantas almas de todas as nações.
Meus filhos, que estejais contentes. Eu estou, ainda que não devesse estar ao olhar para a minha pobre vida. Mas estou contente porque vejo que o Senhor nos procura mais uma vez, que o Senhor continua a ser nosso Pai; porque eu sei que vós e eu veremos que coisas é preciso arrancar, e nós as arrancaremos decididamente; que coisas é preciso queimar, e as queimaremos; quais coisas é preciso entregar, e nós as entregaremos.
Mãe minha: a estes filhos e a mim, dai-nos o bendito dom da humildade na luta, que nos fará sinceros; a alegria de nos sentirmos tão metidos em Deus, endeusados. A alegria sacrificada e sobrenatural de ver toda a pequenez — toda a miséria, toda a debilidade da nossa pobre natureza humana, com as suas fraquezas e defeitos — disposta a ser fiel à graça do Senhor, e assim ser instrumento de coisas grandes.
Dizei comigo: Senhor, sim, com a ajuda de Nossa Mãe do Céu, seremos fiéis, seremos humildes, e nunca esqueceremos que temos pés de barro e que tudo o que brilha em nós é teu, é graça, é essa divinização que tu nos dás porque queres, porque és bom: confitemini Domino quoniam bonus138; louvai ao Senhor, porque ele é bom.
Não há tempestade que possa fazer naufragar o coração da Virgem Mãe de Deus. Cada um de nós, quando vierem as tempestades, lutemos e, para estar seguros, acolhamo-nos sob o refúgio firme do Coração dulcíssimo de Maria. Ela, a Virgem Santíssima, é a nossa segurança, é a Mãe do Amor Formoso, a Sede da Sabedoria; a Medianeira de todas as graças, aquela que nos conduzirá pela mão ao seu Filho, Jesus.
Meus filhos: quando estiverdes tristes e quando estiverdes alegres; quando as vossas misérias forem mais ou menos aparentes e quando vos pesarem mais, recorrei sempre a Maria, porque ela jamais nos abandonará, neste caminho de serviço ao seu Filho Jesus, no meio do mundo.
Santa Maria, Mãe de Deus, Mãe nossa, que tanto sabes das misérias dos teus filhos, os homens. Santa Maria, Poder Suplicante: perdão por nossa vida; pelo que houve em nós que deveria ter sido luz e foram trevas; pelo que deveria ter sido força e foi fraqueza; pelo que deveria ter sido fogo e foi tibieza. Já que conhecemos a pouca qualidade da nossa vida, ajuda-nos a ser diferentes, a ter contigo — como filhos teus — esse bom ar de família.
Uma benção do vosso Padre.
Madri, 24 de março de 1931
S.Th. II-II, q. 129, a. 7 ad 2.
Dn 2, 32-33.
Dn 2, 34-35.
1 Cor 10, 12-13.
2 Pe 1,4.
SANTO AGOSTINHO DE HIPONA, Enarrationes in Psalmos, 85, 4 (CChr.SL 39, p. 1179).
DIADOCO DE FÓTICE, Capita centum de perfectione spirituali, c. 95 (PG 65, cols. 1207-1208).
Mt 10, 34.
S.Th. II-II, q. 24, a. 7 c.
Fl 3,12.
Cf. SANTO AGOSTINHO DE HIPONA, De peccatorum meritis et remissione et de Baptismo parvulorum ad Marcellinum libri tres, II, c. 13, 20 (CSEL 60, p. 93). [N. do E.]
SANTO AGOSTINHO DE HIPONA, Enarrationes in Psalmos, 38, 6 (CChr.SL 39, p. 1179).
Mt 13, 24.
Mt 13, 25.
“São Miguel Arcanjo, defendei-nos no combate: contra os embustes e ciladas do demônio...”, Missale romanum, Oração a São Miguel Arcanjo.
Is 21, 11.
Mt 26, 41.
Mt 13, 26.
Mt 13, 36.
Sl 143 [142], 9-10.
Sl 86 [85], 3.5.
Jo 9, 1-3.
S.Th. II-II, q. 4, a. 8 ad 2.
Jo 9, 6-7.
Jo 8, 12.
SANTO AGOSTINHO DE HIPONA, Sermo 21, 2 (CChr.SL 41, p. 278).
S.Th. III, q. 62, a. 6 ad 3.
Sl 35 [34], 13.
Sl 118 [117], 13.
Cf. Gn 25, 29-34. [N. do E.]
Cf. Gn 25, 29-34. [N. do E.]
Cf. Rm 8, 28. [N. do E.]
SANTO AGOSTINHO DE HIPONA, De correptione et gratia liber unus, c. 9, 24 (CSEL 92, p. 247).
Lc 17, 10.
Jo 21, 17; “Domine, tu omnia nosti; tu scis, quia amo te”: “Senhor, tu sabes tudo. Tu sabes que eu te amo.”
Jo 8,46.
Himno Sacris Sollemniis [N. do E.].
Sl 51[50],19.
SÃO JOÃO CRISÓSTOMO, Sermo non esse ad gratiam concionandum, 4 (PG 50, cols. 658-659).
Sl 71 [70], 7.
Mt 20,28; “non venit ministrari, sed ministrare”: “[o Filho do Homem] não veio para ser servido, mas para servir”.
Jo 3, 30.
SANTO AGOSTINHO DE HIPONA, Sermo 69, 2 (PL 38, col. 441).
Cf. Miguel DE CERVANTES, El coloquio de los perros (Novelas ejemplares), ed. de Florencio SEVILLA ARROYO, Alicante, Biblioteca Virtual Miguel de Cervantes, 2001, fol. 246v. [N. do E.]
Fl 1, 10.
Jo 6, 26.
Jo 6, 28-30.
Jo 6, 34.
Jo 6, 67-70.
Gl 5, 6.
Cf. Mc 10, 35-39; “possumus”: “podemos”.
Rm 6, 3-4.
Fl 4, 13.
Fl 1, 6.
Sl 43 [42], 2; “quia tu es, Deus, fortitudo mea”: “porque tu és, Deus, a minha fortaleza”.
Jo 4, 5-6.
Jo 4, 7.
Jo 4, 31-34.
Symbolum Quicumque pseudo-Athanasianum, 32 (DH n. 75); “perfectus Deus, perfectus homo”: “perfeito Deus e perfeito homem”.
Lc 7, 6-7.
Pr 10, 9.
Eclo 39, 6-11.
Missale romanum (de São Pio V), Feriae III post Dominicam I Passionis, Postcommunio. “Da, quaesumus [...] caelestibus propinquare”: “Outorga-nos, Deus todo-poderoso, que, cumprindo sempre os divinos mandatos, mereçamos alcançar os dons celestiais”.
Missale romanum (de São Pio V), Feriae III post Dominicam I Passionis, Oratio super populum. “Da nobis, quaesumus, Domine [...] serviens augeatur”: “Suplicamos, Senhor, nos concedas servir-te constantemente segundo a tua vontade, para que em nossos dias o povo fiel aumente em mérito e em número” [T. do E.].
Qo 4, 10.
Cf. Missale romanum, Pregão pascal ou Exsultet.
Mt 18, 15.
Documento impresso de https://escriva.org/pt-br/cartas-1/carta-2/ (04/02/2025)