CARTA 1

[Sobre a vida cotidiana como caminho para a santidade, também conhecida pelo incipit Singuli dies; tem a data de 24 de março de 1930 e foi impressa pela primeira vez em janeiro de 1966.]

Todos os dias, filhos queridíssimos, devem testemunhar nosso desejo de cumprir a missão divina que, por sua misericórdia, o Senhor nos confiou. O coração do Senhor é um coração de misericórdia, que se compadece dos homens e deles se aproxima. Nossa dedicação ao serviço das almas é uma manifestação dessa misericórdia do Senhor não só para conosco, mas para com toda a humanidade. Porque Ele nos chamou para nos santificarmos na vida corrente, cotidiana; e para que ensinemos aos outros — providentes, non coacte, sed spontanee secundum Deum1, prudentemente, sem coação; espontaneamente, segundo a vontade de Deus — o caminho para que cada um se santifique em seu estado, no meio do mundo.

Jesus viu a multidão — narra-nos o Evangelho — e teve misericórdia dela2. Meus filhos, o Senhor tem os olhos e o coração voltados para a multidão, para todas as pessoas; e nós também, como Jesus: esta é a razão do chamado divino que recebemos.

Devemos estar sempre voltados para a multidão, pois não há criatura humana que não amemos, que não procuremos ajudar e compreender. Interessamo-nos por todos, porque todos têm uma alma a salvar, porque podemos levar para todos, em nome de Deus, um convite a buscar no mundo a perfeição cristã, repetindo-lhes: estote ergo vos perfecti, sicut et Pater vester caelestis perfectus est 3; sede perfeitos, como é o vosso Pai celestial.

Os mártires seguiram Cristo, mas não apenas eles, escreveu Santo Agostinho; e continuou com um estilo gráfico, mas barroco: há no jardim do Senhor não apenas as rosas dos mártires, mas também os lírios das virgens, a hera dos casados e as violetas das viúvas. Queridíssimos, que ninguém se desespere da sua vocação: Cristo morreu por todos4.

Com que força o Senhor fez ressoar essa verdade ao inspirar sua Obra! Viemos dizer, com a humildade de quem se sabe pecador e pouca coisa —homo peccator sum5, dizemos com Pedro —, mas com a fé de quem se deixa guiar pela mão de Deus, que a santidade não é coisa para privilegiados: que o Senhor chama todos nós, que de todos espera Amor: de todos, onde quer que estejam; de todos, seja qual for seu estado, sua profissão ou seu ofício. Porque essa vida corrente, ordinária, sem aparência, pode ser um meio de santidade: não é necessário abandonar a própria condição no mundo para buscar a Deus se o Senhor não dá à alma uma vocação religiosa, pois todos os caminhos da terra podem ser ocasião de encontro com Cristo.

O nosso é um caminho com formas muito diversas de pensar o temporal — nos campos profissional, científico, político, econômico etc. —, com liberdade pessoal e com a consequente responsabilidade também pessoal, a qual ninguém pode atribuir à Igreja de Deus ou à Obra, e que cada um sabe suportar com valentia e sensatez. Por isso, a nossa diversidade não é um problema para a Obra: pelo contrário, é uma manifestação de bom espírito, de uma vida corporativa limpa, de respeito à legítima liberdade de cada um, porque ubi autem SpiritusDomini, ibi libertas6; onde está o Espírito do Senhor, aí há liberdade.

Gostaria que, ao considerar estas coisas na presença de Deus, vosso coração se enchesse de gratidão e, ao mesmo tempo, de fervor apostólico, de desejo de levar ao povo a notícia dessa caridade de Cristo. Não vos esqueçais: dar doutrina é a nossa grande missão.

Nisto consiste o grande apostolado da Obra: mostrar a essa multidão que nos espera qual é o caminho que leva direto a Deus. Por isso, meus filhos, deveis saber que sois chamados para essa tarefa divina de proclamar as misericórdias do Senhor: misericordia Domini in aeternum cantabo7, cantarei eternamente as misericórdias do Senhor.

Eu vos disse, desde o primeiro dia, que Deus não espera de nós coisas extraordinárias, singulares; e quer que levemos esta bendita chamada divina por todo o mundo e convidemos muitos a segui-la. Mas devemos fazer o nosso proselitismo8 com simplicidade, com o exemplo da nossa conduta: mostrando que muitos — se não todos — podem, com a graça de Deus, transformar a vida ordinária e corrente em caminho divino, da mesma forma como soubestes tornar divina a vossa vida, também corrente e ordinária.

Nosso modo de ser deve estar impregnado de naturalidade, para que possam ser aplicadas a nós aquelas palavras da Sagrada Escritura: Havia um homem na terra de Hus chamado Jó, e ele era simples e reto, e amava a Deus, e se afastava do mal9. Como esta simplicidade cristalina, que devemos procurar que exista em nós, não pode ser simploriedade — sem mistério nem segredo, dos quais não precisamos e nunca precisaremos —, lembrai-vos do que se lê no Eclesiástico: non communices homini indocto, ne male de progenie tua loquatur10; não fales das tuas coisas particulares com um homem ignorante, para que não fale mal da tua linhagem.

A missão sobrenatural que recebemos não nos leva a distinguir-nos e a separar-nos dos outros; leva-nos a unir-nos a todos, porque somos iguais aos outros cidadãos da nossa pátria. Somos, repito, iguais aos outros — não, como os outros — e temos em comum com eles as preocupações de cidadão, da profissão ou ofício que temos, das outras ocupações, do ambiente, da maneira externa de vestir e agir. Somos homens ou mulheres comuns, que em nada diferimos de nossos companheiros e colegas, daqueles que convivem conosco em nosso ambiente e em nossa condição.

Gosto de falar por parábolas e, mais de uma vez, comparei a nossa missão, seguindo o exemplo do Senhor, à do fermento que, de dentro da massa11, fermenta-a até transformá-la em bom pão. Eu gostava, nas minhas temporadas de verão, quando menino, de ver o pão sendo feito. Naquela época, não pretendia tirar consequências sobrenaturais: interessava-me porque as empregadas me traziam um galo, feito com aquela massa. Agora me lembro com alegria de toda a cerimônia: era um verdadeiro ritual preparar bem o fermento — uma pelota de massa fermentada, proveniente da fornada anterior —, que se juntava à água e à farinha peneirada. Feita a mistura e amassada, cobriam-na com uma manta e, assim protegida, deixavam-na repousar até inchar a mais não poder. Depois, posta em pedaços no forno, saía aquele pão bom, vistoso, maravilhoso. Porque o fermento estava bem conservado e preparado, deixava-se desfazer — desaparecer — no meio daquela quantidade, daquela multidão, que a ele devia a qualidade e a importância.

Que o nosso coração se encha de alegria pensando em ser isso: levedura que faz a massa fermentar. Nossa vida não é egoísta: trata-se de uma luta na linha de frente, de entrar na torrente da sociedade, passando despercebidos; e de chegar a todos os corações, fazendo em todos eles o grande trabalho de transformá-los em pão bom, que seja a paz — a alegria e a paz — de todas as famílias, de todos os povos: iustitia, et pax, et gaudium in Spiritu Sancto12; justiça, paz e gozo no Espírito Santo.

Mas, para ser fermento, é necessária uma condição: que passeis despercebidos. O fermento não tem efeito se não se mete na massa, se não se confunde com ela. Não me cansarei de vos repetir, meus filhos, que não deveis distinguir-vos de forma alguma dos outros; que vossa aspiração deve ser a de permanecer onde estávamos, sendo o que somos: cristãos comuns, pessoas que levam uma vida ordinária e simples.

Contemplando vossas vidas, parecem adquirir nova realidade as palavras que foram escritas nos primórdios do cristianismo: os cristãos não se distinguem dos demais nem por sua terra, nem por sua fala, nem por seus costumes. Porque não vivem em cidades exclusivamente suas, nem falam uma língua estranha, nem levam um gênero de vida separado dos outros. Na verdade, a doutrina que vivem não foi inventada por eles, porém, vivendo em cidades gregas ou bárbaras, conforme o destino que coube a cada um, e adaptando-se ao vestuário, à alimentação e, em outros aspectos de vida, aos usos e costumes de cada país, manifestam um tom peculiar de conduta, admirável e, conforme todos confessam, surpreendente13.

Mas, acima de tudo, tenhamos em mente o exemplo de Cristo: tendo Jesus nascido em Belém de Judá, no reinado de Herodes, eis que alguns magos vieram do Oriente a Jerusalém, perguntando: onde está aquele que nasceu, rei dos judeus? Vimos sua estrela no Oriente e viemos com a intenção de adorá-lo. Ao ouvir isso, o rei Herodes ficou perturbado, e com ele toda a Jerusalém14.

Eles se assustam, surpreendem-se: não sabiam que o Salvador já estava entre eles. Um rei que passa despercebido; um rei que é Deus e passa despercebido. A lição de Jesus Cristo é a de que devemos conviver entre os outros de nossa condição social, de nossa profissão ou ofício, desconhecidos, como um entre muitos.

Não desconhecidos por causa do nosso trabalho, nem desconhecidos porque não vos destacais por vossos talentos; mas desconhecidos porque não há necessidade de que saibam que sois almas entregues a Deus. Que o experimentem, que se sintam ajudados a ser limpos e nobres ao ver vossa conduta cheia de respeito pela legítima liberdade de todos, ao ouvir dos vossos lábios a doutrina, sublinhada pelo vosso exemplo coerente; mas que a vossa dedicação ao serviço de Deus passe escondida, despercebida, como passou despercebida a vida de Jesus em seus primeiros trinta anos.

Deveis viver com simplicidade — já vos disse —, com discrição, a vossa entrega amorosa ao Senhor; deveis estar prevenidos contra a curiosidade agressiva de alguns e tratar com extrema delicadeza tudo o que se refira à intimidade da vossa vida apostólica.

Embora saiba que não se faz necessário, uma vez que conheceis bem o espírito que Deus nos pede para viver, quero fazer uma advertência: discrição não é mistério, nem segredo; é simplesmente naturalidade. Na Obra, nunca tivemos, nem teremos, qualquer segredo, insisto: não precisamos deles.

Eu odeio o segredo. Quando alguma vez uma pessoa veio a mim e me disse: vou lhe falar em segredo, respondi-lhe: pois bem, ajoelhe-se, porque eu não gosto de nenhum segredo fora o do Sacramento da Penitência. Se quiser, confie-se a um amigo e a um cavalheiro; se não, de joelhos e em confissão.

O que o Senhor nos pede é naturalidade: se somos cristãos comuns, almas entregues a Deus no meio do mundo — no mundo e do mundo, mas sem ser mundanos —, não podemos comportar-nos de outra forma: fazer coisas que em outros são estranhas também seriam estranhas em nós. Sabeis muito bem que proibi que nossa entrega tenha manifestações externas especiais: não há razão alguma para usarmos uniformes ou insígnias.

Respeito quem pensa que, para ser bom cristão, é preciso colocar uma dúzia de escapulários ou medalhas no pescoço. Tenho muita devoção aos escapulários e medalhas, mas sou mais devoto de ter doutrina, de que as pessoas adquiram um conhecimento profundo da religião.

Assim, para mostrar que se é cristão, não é necessário adornar-se com um punhado de distintivos, pois o cristianismo se manifestará com simplicidade nas vidas dos que conhecem a sua fé e lutam para praticá-la, no esforço de se comportar bem, na alegria com que lidam com as coisas de Deus, no entusiasmo com que vivem a caridade.

Para nós, não agir assim seria esquecer a própria essência de nosso chamado divino, porque então já não seríamos mais pessoas comuns: teríamos nos separado da massa e teríamos deixado de ser fermento. Só uma coisa deve nos distinguir: o fato de que não nos distinguimos. Por isso, para algumas pessoas que são amigas de chamar a atenção ou de fazer palhaçadas, somos estranhos porque não somos estranhos.

A vossa vida e a minha têm de ser assim vulgares: procuramos fazer bem — todos os dias — as mesmas coisas que temos obrigação de viver; cumprimos nossa missão divina no mundo cumprindo o pequeno dever de cada momento. Melhor, esforçando-nos por cumpri-lo, porque às vezes não conseguiremos e, ao chegar a noite, no exame, teremos de dizer ao Senhor: não te ofereço virtudes; hoje só posso oferecer-te defeitos, mas, com tua graça, chegarei a poder me chamar vencedor.

Nossa vida sobrenatural, nosso endeusamento, não nos deve levar à tolice de achar que não temos erros: muitas vezes teremos apenas imperfeições, contra as quais lutamos com a graça de Deus e com o empenho da nossa vontade. Essa luta, essa perseverança na tarefa sobrenatural de tornar divina a vida ordinária, é o que o Senhor nos pede, pela chamada específica que recebemos dEle.

O nosso caminho não é o dos mártires — se vier o martírio, nós o receberemos como um tesouro —, mas o dos confessores da fé: confessar nossa fé, manifestar nossa fé na vida cotidiana. Porque os sócios15 da Obra vivem a vida corrente, a mesma vida de seus companheiros de ambiente e de profissão. Mas, no trabalho ordinário, devemos sempre manifestar a caridade ordenada, o desejo e a realidade de fazer com perfeição a nossa tarefa por amor; a convivência com todos, para trazê-los opportune et importune, com a ajuda do Senhor e com garbo humano, para a vida cristã, e até para a perfeição cristã no mundo; o desprendimento das coisas da terra, a pobreza pessoal amada e vivida.

Devemos ter presente a importância santificadora do trabalho e sentir a necessidade de compreender a todos para servir a todos, sabendo que somos filhos do Pai Nosso que está nos céus, e unindo — de uma forma que acaba por ser conatural — a vida contemplativa com a ativa: porque assim o exige o espírito da Obra, e a graça de Deus facilita aos que generosamente o servem nesta chamada divina.

Deveis aproximar as almas de Deus com a palavra adequada, que desperte horizontes de apostolado; com o conselho discreto, que ajude a enfocar certo problema de maneira cristã; com uma conversa amável, que ensine a viver a caridade: por meio de um apostolado a que algumas vezes chamei de amizade e confidência.

Mas deveis atrair sobretudo com o exemplo da integridade das vossas vidas, com a afirmação — humilde e audaz ao mesmo tempo — que consiste em viver de maneira cristã entre os vossos iguais, com um estilo ordinário mas coerente, manifestando em nossas obras a nossa fé: essa será, com a ajuda de Deus, a razão da nossa eficácia.

Não tenhais medo do mundo: nós somos do mundo e, unidos a Deus, se vivermos o nosso espírito, nada nos poderá prejudicar. Talvez, em algumas ocasiões, entre pessoas afastadas de Deus, o nosso comportamento cristão possa chocar: tereis de ter a coragem, apoiada na onipotência divina, de ser fiéis.

Peço para os meus filhos a fortaleza de espírito que os torne capazes de levar consigo o seu próprio ambiente; porque um filho de Deus em sua Obra deve ser como uma brasa ardente, que incendeia onde quer que esteja, ou pelo menos eleva a temperatura espiritual dos que o rodeiam, arrastando-os para uma intensa vida cristã.

Pelo contrário, se alguma vez vier a tentação de fazer coisas estranhas e extraordinárias, vencei-a: porque, para nós, esse modo de agir é um equívoco, um descaminho. Irei dizê-lo com um exemplo que provavelmente vos divertirá. Pensai que ides a um hotel e pedis um pescado. Alguns minutos se passam e o garçom traz um prato: ao olhar para ele, percebeis com surpresa que não é um peixe, mas uma cobra. Talvez um desses grandes taumaturgos, que admiro e cuja vida é cheia de milagres, reagisse dando uma bênção e transformando o réptil num pescado bem preparado. Essa atitude merece todo o meu respeito, mas não é a nossa.

A nossa é chamar o garçom e dizer-lhe claramente: isto é uma porcaria, leve-o e traga-me o que pedi. Ou ainda, se houver motivos que o aconselhem, podemos fazer um ato de mortificação e comer a cobra, sabendo que é uma cobra, oferecendo isso a Deus. Na verdade, caberia uma terceira posição: chamar o garçom e dar-lhe umas bofetadas; mas também não é essa a nossa solução, pois seria uma falta de caridade.

Meus filhos, o extraordinário nosso é o ordinário: o ordinário feito com perfeição. Sorrir sempre, sem dar importância — também com elegância humana — às coisas que incomodam, que irritam: ser generoso sem regateio. Em resumo, fazer da nossa vida cotidiana uma oração contínua.

Outros têm um espírito diferente, aquele que poderíamos chamar do grande taumaturgo: acho bom, admiro-o, mas nunca o imitarei. Nosso espírito é o espírito da providência ordinária. Maior milagre é que todos os dias se cumpram as leis que regem a natureza do que o fato de que alguma vez ocorra uma exceção. Não sejais amigos de milagrices: o milagre da Obra consiste em saber fazer, da pequena prosa de cada dia, decassílabos, verso heroico.

Portanto, o nosso caminho é muito claro: as coisas pequenas. Sendo homens duros e fortes, pode-se comparar a nossa vida à de uma criança pequena — já tereis visto isso tantas vezes — que é levada para passear no campo e apanha uma florzinha, e outra, e outra. Flores pequenas e humildes, que passam despercebidas aos grandes, mas que ela — como é criança — vê e reúne para formar um buquê, para oferecê-lo à sua mãe, que a olha com um olhar de amor.

Somos crianças diante de Deus e, se considerarmos assim nossa vida cotidiana, aparentemente sempre igual, veremos que as horas dos nossos dias se animam, que estão cheias de maravilhas, que são diversas entre si e todas formosas. Basta não fechar os olhos à luz divina, porque o Senhor está nos falando constantemente em mil pequenos detalhes de cada dia.

Nesta vida corrente, enquanto avançamos na terra junto com os nossos colegas de profissão ou ofício — como diz o ditado espanhol, cada ovelha com seu par, pois essa é a nossa vida —, Deus Nosso Pai nos dá a oportunidade de nos exercitar em todas as virtudes, de praticar a caridade, a fortaleza, a justiça, a sinceridade, a temperança, a pobreza, a humildade, a obediência. Dir-vos-ei com São João Crisóstomo, quando, dirigindo-se aos que sonhavam praticar as virtudes em ocasiões difíceis, em praça pública, recordava-lhes como podemos praticar tudo isso em nossa própria casa: com os amigos, com a esposa, com os filhos. Comecemos com algo simples: por exemplo, por não praguejar. Pratiquemos essa ciência espiritual em nossa própria casa. Com efeito, não faltará quem venha nos atrapalhar: o criado vos irrita, a mulher vos tira dos trilhos com seus momentos de mau humor, a criança, com suas travessuras e rebeldias, tenta fazer-vos explodir em ameaças e repreensões. Pois bem, se em casa, constantemente espicaçados por tudo isto, conseguis não praguejar, facilmente saireis ilesos também em praça pública16.

Também posso contar-vos outro episódio simples e claro. Há alguns anos — antes que Deus quisesse sua Obra —, conheci uma pessoa idosa que costumava deixar suas roupas desarrumadas, jogadas aqui e ali. Quando alguém lhe fazia notar isso, ela comentava: a roupa é para mim, e não eu para a roupa. Mais tarde, quando Deus me chamou para a sua Obra, quando me lembrei daquele acontecimento, compreendi que a roupa, que as coisas que uso, não são para mim; ou melhor, que são para mim, por Deus: que me permitem viver a pobreza, usando-as com cuidado, fazendo com que rendam.

O Senhor chamou-nos à sua Obra para que sejamos santos; e não seremos santos se não nos unirmos a Cristo na Cruz: não há santidade sem cruz, sem mortificação. Onde encontraremos mais facilmente a mortificação é nas coisas ordinárias e correntes: no trabalho intenso, constante e ordenado; sabendo que o melhor espírito de sacrifício é a perseverança em terminar com perfeição o trabalho começado; na pontualidade, preenchendo o dia com minutos heroicos; no cuidado com as coisas que temos e usamos; no afã de servir, que nos faz cumprir com exatidão os deveres mais pequeninos; e nos pormenores de caridade, para tornar amável para todos o caminho de santidade no mundo: um sorriso pode ser, às vezes, a melhor manifestação do nosso espírito de penitência.

Por outro lado, meus filhos, não é espírito de penitência o de quem faz grandes sacrifícios alguns dias e deixa de se mortificar nos dias seguintes. Tem espírito de penitência aquele que sabe se vencer todos os dias, oferecendo ao Senhor, sem espetáculo, mil coisas pequenas. Esse é o amor sacrificado que Deus espera de nós.

Também sabemos que as tentações a temer não são tanto as grandes batalhas, mas as pequenas raposas que destroem a vinha17, pois quem não dá atenção ao pouco cairá na miséria18. Só assim conseguiremos que este corpo corruptível seja revestido de incorruptibilidade e que este corpo mortal seja revestido de imortalidade19.

E ensinei-vos que o nosso modo sobrenatural de proceder deve levar-nos a colocar a luta nos pequenos detalhes — a ordem no trabalho, a pontualidade no plano de vida, a fidelidade aos deveres de estado ou ofício, que se apresentam a cada instante —, de tal forma que ali, em nossas batalhas de criança, o inimigo se canse e se esgote.

Se a nossa luta está nas pequenas coisas, devemos fazer delas ocasião para o nosso diálogo com Deus. É possível que haja pessoas que, como homens fortes para os quais basta fazer uma só grande refeição por dia, conservem a tensão interior graças a um longo período de oração; nós somos crianças que, para se manter, precisam de muitas pequenas refeições: temos sempre necessidade de novo alimento.

Todos os dias deve haver algum tempo dedicado sobretudo ao trato com Deus, mas sem esquecer que a nossa oração deve ser constante, como o bater do coração: jaculatórias, atos de amor, ação de graças, atos de desagravo, comunhões espirituais. Ao caminhar pela rua, ao fechar ou abrir uma porta, ao ver ao longe o campanário de uma igreja, ao iniciar as nossas tarefas, ao fazê-las e ao terminá-las, referimos tudo ao Senhor. Estamos obrigados a fazer da nossa vida ordinária uma oração contínua, porque somos almas contemplativas em meio a todos os caminhos do mundo.

Eu quis, filhos queridíssimos, descrever-vos alguns traços do nosso modo de santificar a vida ordinária, convertendo-a em meio e ocasião de santidade própria e alheia. Alcançaremos esse fim se tivermos presente esta condição: que cuidemos da importância das pequenas coisas.

É oportuno relembrar a história daquele personagem20, imaginado por um escritor francês, que pretendia caçar leões nos corredores de sua casa e, naturalmente, não os encontrava. Nossa vida é comum e corrente: querer servir ao Senhor com grandes coisas seria como tentar caçar leões nos corredores. Assim como o caçador da história, acabaríamos de mãos vazias: as coisas grandes, geralmente, ocorrem apenas na imaginação, raramente na realidade.

Por outro lado, ao longo da vida, se o Amor nos move, quantos detalhes que podem ser cuidados nós encontraremos, quantas ocasiões para prestar um pequeno serviço, quantas contradições — sem importância — saberemos apreciar. Pequenas coisas que custam e são oferecidas por um motivo específico: a Igreja, o Papa, os teus irmãos, todas as almas.

Meus filhos, repito-vos mais uma vez: teríamos errado o caminho se desprezássemos as coisas pequenas. Neste mundo, tudo o que é grande é uma soma de coisas pequenas. Prestai atenção ao pequeno, que estejais nos detalhes. Não é obsessão, não é mania: é carinho, amor virginal, sentido sobrenatural em todos os momentos e caridade. Sede sempre fiéis nas pequenas coisas por Amor, com retidão de intenção, sem esperar na terra um sorriso ou um olhar de gratidão.

Se assim viverdes, fareis com a vossa vida um fecundo apostolado e, no final do caminho, merecereis o louvor de Jesus: quia super pauca fuisti fidelis, super fine constituam: intra in gaudium domini tui21; já que foste fiel no pouco, nas pequenas coisas, eu te entregarei o muito: entra no gozo do teu Senhor.

Nossa vida é simples, comum, mas, se a viverdes de acordo com as exigências do nosso espírito, ela será ao mesmo tempo heroica. A santidade nunca é uma coisa medíocre, e o Senhor não nos chamou para tornar mais fácil, menos heroico, caminhar para Ele. Ele nos chamou para que lembremos a todos que, em qualquer estado e condição, em meio às nobres ocupações da terra, eles podem ser santos: que a santidade é algo acessível. E, ao mesmo tempo, para que proclamemos que a meta é bem alta: sede perfeitos, como vosso Pai celestial é perfeito22. Nossa vida é o heroísmo da perseverança no ordinário, nas coisas de todos os dias.

A vida habitual não é algo sem valor. Se fazer as mesmas coisas todos os dias pode parecer chato, plano, sem atrativos, é porque falta amor. Quando há amor, cada novo dia tem outra cor, outra vibração, outra harmonia. Que façais tudo por Amor. Não nos cansemos de amar o nosso Deus: precisamos aproveitar todos os segundos da nossa pobre vida para servir todas as criaturas, por amor a Nosso Senhor, porque o tempo da vida mortal é sempre pouco para amar, é curto como o vento que passa23.

Alguém pode, talvez, imaginar que na vida ordinária há pouco a oferecer a Deus: ninharias, insignificâncias. Um menino, querendo agradar seu pai, oferece-lhe o que tem: um soldadinho de chumbo sem cabeça, um carretel sem linha, umas pedrinhas, dois botões: tudo o que tem de valor em seus bolsos, seus tesouros. E o pai não considera a puerilidade do presente: agradece e estreita o filho junto do seu coração, com imensa ternura. Procedamos assim com Deus, e essas ninharias — essas insignificâncias — tornam-se coisas grandes, porque é grande o amor: isso é o que corresponde a nós, tornar heroicos por Amor os pequenos detalhes de cada dia, de cada instante.

Sejamos humildes, busquemos somente a glória de Deus: porque nossa vida de entrega, calada e oculta, deve ser uma constante manifestação de humildade. A humildade é o fundamento da nossa vida, meio e condição de eficácia. A soberba e a vaidade podem apresentar como algo atraente a vocação de lanterna de festa popular, que brilha e se movimenta, que é visível a todos, mas que, na verdade, dura apenas uma noite e morre sem deixar nada atrás de si.

Aspirai, antes, queimar-vos num canto, como aquelas lâmpadas que acompanham o Sacrário na penumbra de um oratório, eficazes aos olhos de Deus; e, sem ostentação, acompanhai também os homens —vossos amigos, vossos colegas, vossos parentes, vossos irmãos! — com o vosso exemplo, com a vossa doutrina, com o vosso trabalho e com a vossa serenidade e com a vossa alegria.

Vita vestra est abscondita cum Christo in Deo24; vivei voltados para Deus, não para os homens. Essa foi e sempre será a aspiração da Obra: viver sem a glória humana; e não vos esqueçais de que, num primeiro momento, eu teria gostado que a Obra não tivesse nome, para que a sua história fosse conhecida apenas por Deus: mas, como abominamos o segredo e queremos trabalhar sempre dentro dos limites da lei em cada país, não poderemos evitar o uso de um nome.

Essa também deve ser a aspiração de cada um de vós, meus filhos: passar despercebidos, imitar Cristo, que permaneceu oculto por trinta anos sendo simplesmente o filho do artesão25; imitar Maria que, sendo Mãe de Deus, gosta de se chamar sua escrava: ecce ancilla Domini26.

O Senhor quer que sejamos humildes: essa humildade não significa que não chegueis aonde deveis chegar no campo profissional, no trabalho ordinário e, é claro, na vida espiritual. É preciso chegar, mas sem procurar a vós mesmos, com retidão de intenção. Não vivemos para a terra, nem para a nossa honra, mas para a honra de Deus, para a glória de Deus, para o serviço de Deus: só isso nos move.

Deus quis servir-se de vós, de vossa luta por alcançar a santidade, e inclusive dos vossos talentos humanos. Lembrai-vos sempre do mandamento de Cristo: deixai brilhar a vossa luz diante dos homens, para que vejam as vossas boas obras e glorifiquem o vosso Pai que está nos céus27. A Ele toda a glória, toda a honra: soli Deo honor et gloria in saecula saeculorum28, só a Deus devemos dar honra e glória, pelos séculos sem fim.

Não deixeis de meditar nas palavras do Apóstolo: pois bem, quem é Apolo, quem é Paulo? Simples ministros daquele em quem crestes, e cada um segundo o dom que o Senhor lhe concedeu. Eu plantei, Apolo regou, mas Deus é quem fez crescer. E assim nem o que planta é alguma coisa, nem o que rega, mas Deus, que deu o incremento29.

Não esqueçais que é um sinal de predileção divina passar ocultos. Apaixona-me o texto do Evangelho em que São João, ao descrever um grupo de discípulos, nos diz: estavam juntos Simão Pedro e Tomé, chamado Dídimo, e Natanael, que era de Caná da Galileia, e os filhos de Zebedeu, e outros dois discípulos30. Tenho muita simpatia por esses dois cujos nomes nem sequer são conhecidos, pois passam despercebidos. Dá-me muita alegria pensar que se pode viver uma vida inteira assim: ser apóstolo, ocultar-se e desaparecer. Embora às vezes custe, é muito bonito desaparecer: Illum oportet crescere, me autem minui31.

Meus filhos, temos muito a fazer no mundo: o Senhor nos deu uma missão divina. Desde o primeiro dia, convidei-vos a agradecer esta mostra de predileção soberana, esta chamada divina ao serviço de todos os homens: Deus pede-nos que o zelo apostólico encha os nossos corações, que nos esqueçamos de nós mesmos, para nos ocuparmos — com sacrifício alegre — de toda a humanidade. A maioria dos que têm problemas pessoais os têm por causa do egoísmo de pensar em si mesmos. Dar-se, dar-se, dar-se! Dar-se aos outros, servir os outros por amor a Deus: esse é o caminho.

Temos de encher o mundo de luz, pois o nosso tem de ser um serviço feito com alegria. Que, ali onde haja um filho de Deus em sua Obra, não falte esse bom humor, que é fruto da paz interior. Da paz interior e da entrega: o dar-se ao serviço dos outros é de tal eficácia que Deus o recompensa com uma humildade cheia de alegria espiritual.

Nada pode produzir maior satisfação do que levar tantas almas à luz e ao calor de Cristo. Pessoas que não foram ensinadas por ninguém a valorizar a sua vida corrente, para as quais o ordinário parece vão e sem sentido; que não conseguem compreender e se admirar diante dessa grande verdade: Jesus Cristo preocupou-se conosco, até com os menores, até com os mais insignificantes. Deveis dizer a todas as pessoas: Cristo também vos procura, como procurou os primeiros doze, como procurou a mulher samaritana, como procurou Zaqueu; como procurou o paralítico: surge e ambula32, levanta-te, pois o Senhor te espera; como o filho da viúva de Naim: tibi dico, surge!33, eu te digo, levanta-te do teu comodismo, da tua poltronice, da tua morte.

Deus faz outra chamada a alguns — que eu amo e venero, embora não seja a minha nem a vossa — e os convida a deixar o mundo; mas quer que a grande maioria dos cristãos fique no lugar em que estavam, no seu lugar, no seu ambiente, na sua profissão, para que continuem a ser pessoas comuns e, ao mesmo tempo, luz do mundo, sal da terra34.

Meus filhos, fé. Considerai o que São Paulo escreve aos de Corinto: modicum fermentum totam massam corrumpit35, um pouco de fermento faz toda a massa fermentar. Permanecei unidos no amor a Deus, no relacionamento de confiança com Jesus, na devoção filial a Maria Santíssima. Se fordes fiéis, como fruto da vossa entrega calada e humilde, o Senhor — por vossas mãos — fará maravilhas. Reviver-se-á aquela passagem de São Lucas: regressaram os setenta e dois discípulos cheios de alegria, dizendo: Senhor, até os próprios demônios se submetem a nós, em virtude do teu nome36.

Meus filhos: date, et dabitur vobis: mensuram bonam, et confertam, et coagitatam, et supereffluentem dabunt in sinum vestrum37; dai, e dar-se-vos-á uma boa medida, recalcada e bem cheia até transbordar. Dai muito e tereis muito: compreendei, e acabaremos sendo compreendidos; amai a todos, e acabaremos sendo amados por todos.

Escutai sempre em vosso coração aquele clamor do Senhor que moveu tantas almas, também a minha: ignem veni mittere in terram, et quid volo nisi ut accendatur?38 Vim trazer fogo à terra, e o que quero senão que queime? Acesos nesse fogo divino, vós e eu veremos como nossa vida se purifica: como aprendemos a lutar contra os nossos erros, a adquirir a perfeição cristã, o bom endeusamento.

Só assim, com Amor — caridade de Cristo — e com a humildade do conhecimento próprio, poderemos ter voz para dizer a Nosso Senhor, non verbo neque lingua, sed opere et veritate39— não com a língua, mas com as obras e na verdade —, que queremos seguir os seus passos; só então saberemos responder à chamada de Deus com um grito de verdadeira entrega, de correspondência à graça divina: ecce ego, quia vocasti me!40; aqui estou, porque me chamaste!

Abençoa-vos carinhosamente vosso Padre.

Madri, 24 de março de 1930

Notas
1

1 Pe 5, 2 (Vg).

2

Mc 6,34.

Referências da Sagrada Escritura
Notas
3

Mt 5,48

4

SANTO AGOSTINHO DE HIPONA, Sermo 304, 2 (PL 38, col. 1396).

5

Lc 5,8.

6

2 Cor 3, 17.

Referências da Sagrada Escritura
Notas
7

Sl 89 [88], 2.

Referências da Sagrada Escritura
Notas
8

“Proselitismo”: este termo, que durante séculos foi sinônimo de difusão do Evangelho, tem para São Josemaria um significado preciso, inspirado na Escritura e na Tradição da Igreja: contagiar os outros com o amor a Jesus Cristo e com o desejo de se entregar ao seu serviço, com delicado respeito pela sua liberdade [N. do E.].

9

Jó 1, 1.

10

Eclo 8, 5.

Referências da Sagrada Escritura
Notas
11

Cf. Mt 13,33.

12

Rm 14, 17.

Referências da Sagrada Escritura
Notas
13

Ad Diognetum, 5, 1-4 (SC 33, p. 63).

14

Mt 2, 1-3.

Referências da Sagrada Escritura
Notas
15

“Sócios”: hoje prefere-se denominá-los “membros” ou “fiéis”. | “opportune et importune”: “com oportunidade e sem ela”, cf. 2 Tm 4, 2. [N. do E.]

Notas
16

SÃO JOÃO CRISÓSTOMO, In Matthaeum Homilia 11, 8 (PG 57, col. 201).

Notas
17

Ct 2, 15.

18

Eclo 19, 1.

19

1 Cor 15, 53.

Referências da Sagrada Escritura
Notas
20

“aquele personagem”: faz alusão ao protagonista da novela Tartarin de Tarascon (1872), de Alphonse Daudet (1840-1897). [N. do E.]

Notas
21

Mt 25,21.

22

Mt 5,48.

23

Cf. Jó 7, 7.

Referências da Sagrada Escritura
Notas
24

Cl 3, 3.

25

Mt 13, 55.

26

Lc 1, 38.

Referências da Sagrada Escritura
Notas
27

Mt 5, 16.

28

1 Tm 1, 17.

29

1 Cor 3, 4-7.

30

Jo 21, 2.

31

Jo 3, 30.

Referências da Sagrada Escritura
Notas
32

Cf. Mc 2, 9.

33

Lc 7, 14.

34

Mt 5, 13-14.

Referências da Sagrada Escritura
Notas
35

1 Cor 5, 6.

36

Lc 10, 17.

37

Lc 6, 38.

38

Lc 12, 49.

39

Cf. 1 Jo 3, 18.

40

1 Rs 3, 6.

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