CARTA 3
Tudo o que é ou parece novo, refira-se quer à doutrina, quer ao modo de comunicá-la aos homens e à maneira de levá-la à prática, deve abrir um novo caminho — pelo menos em aparência —, mesmo que aquilo que ensine ou faça corresponda por completo ao reto saber cristão e à tradição.
Por isso, convém que eu vos diga mais uma vez que a Obra não vem inovar nada e muito menos reformar qualquer coisa da Igreja: aceita com fidelidade tudo quanto a Igreja indica como certo na fé e na moral de Jesus Cristo. Não queremos nos libertar das travas – santas – da disciplina comum dos cristãos. Queremos ser, pelo contrário, com a graça do Senhor – que Ele me perdoe esta aparente falta de humildade –, os melhores filhos da Igreja e do Papa.
Para alcançar esta meta é necessário amar a liberdade. Evitai esse abuso, que parece exasperado em nossos tempos — é evidente e continua a se manifestar de fato nas nações de todo o mundo — e que revela o desejo, contrário à legítima independência dos homens, de obrigar todos a formar um único grupo naquilo que é opinável, de criar dogmas doutrinais temporais; de defender esse falso critério com tentativas e propagandas de natureza e substância escandalosas, contra os que têm a nobreza de não se submeter.
2. Instaurare omnia em Christo1, diz São Paulo aos de Éfeso, renovai o mundo no espírito de Jesus Cristo, colocai Cristo no alto e no cerne de todas as coisas. Viemos santificar qualquer esforço humano honesto: o trabalho ordinário, precisamente no mundo, de modo laical e secular, a serviço da Igreja Santa, do Romano Pontífice e de todas as almas.
Para consegui-lo, devemos defender a liberdade. A liberdade dos membros, mas formando um único corpo místico com Cristo, que é a cabeça, e com seu Vigário na terra. Parece que as coisas celestiais tinham sido desgarradas das coisas do mundo e que já não tinham cabeça. Mas Deus colocou Cristo encarnado como cabeça de todas as coisas. Portanto, chegar-se-á à unidade, a uma união harmoniosa, quando todas as coisas estiverem submetidas a uma única cabeça, que é Cristo.
Diremos com Santo Irineu: há um só Deus Pai, [...] e um só Cristo, Jesus Nosso Senhor, que perpassa toda a economia e recapitula tudo em si mesmo: neste tudo está incluído o homem, criatura de Deus. Ele recapitula, portanto, o homem em si mesmo. O invisível tornou-se visível; o incompreensível, compreensível; o impassível, passível; e o Verbo se fez homem, resumindo todas as coisas em si. E assim como o Verbo de Deus é o primeiro entre os seres celestiais, espirituais e invisíveis, assim também tem soberania sobre o mundo visível e corpóreo, assumindo toda a primazia; e, fazendo-se Cabeça da Igreja, atrai a si todas as coisas no devido tempo2.
Agora compreenderemos a emoção daquele pobre sacerdote que, tempos atrás, sentiu em sua alma esta locução divina: et ego, se exaltatus fuero a terra, omnia traham ad meipsum3; quando eu for levantado ao alto sobre a terra, tudo atrairei a mim. Ao mesmo tempo, ele viu claramente o significado que o Senhor, naquele momento, quis dar àquelas palavras da Escritura: é preciso colocar Cristo no cume de todas as atividades humanas. Compreendeu claramente que, com o trabalho ordinário em todas as tarefas do mundo, era necessário reconciliar a terra com Deus, a fim de que o profano — mesmo sendo profano — se tornasse sagrado, consagrado a Deus, fim último de todas as coisas.
Há um parêntese de séculos, inexplicável e muito longo, em que esta doutrina soava e soa como coisa nova: buscar a perfeição cristã pela santificação do trabalho ordinário, cada um por meio da sua profissão e em seu próprio estado. Durante muitos séculos, o trabalho foi considerado coisa vil; foi tomado, mesmo por pessoas de grande habilidade teológica, como obstáculo à santidade dos homens.
Digo-vos, minhas filhas e filhos, que a qualquer pessoa que exclua um trabalho humano honesto —importante ou humilde —, afirmando que não pode ser santificado e santificador, podeis dizer com certeza que Deus não a chamou à sua Obra.
Será preciso rezar, teremos de rezar, teremos de sofrer, para tirar esse erro da mente das pessoas boas. Mas chegará o tempo em que, com base no trabalho humano em todas as categorias, tanto intelectuais como manuais, se levantará a uma só voz o clamor dos cristãos dizendo: cantate Domino canticum novum: cantate Domino omnis terra4; cantai ao Senhor um cântico novo: que toda a terra louve o Senhor.
Para abrir uma brecha na consciência dos homens, depois de tantos séculos de erro ou esquecimento dos deveres do cristão, tendes de ser amigos do trabalho. Sem o trabalho nós não nos santificaremos: não é possível, porque o trabalho é a matéria que temos de santificar e o instrumento para a santificação.
Deveis ser fiéis, deveis ser fortes, deveis ser dóceis, necessitais de virtudes humanas, coração grande, lealdade. Com isso, não vos peço coisas extraordinárias; peço-vos simplesmente que toqueis o céu com a cabeça: tendes direito a isso, porque sois filhos de Deus. Mas que os vossos pés, que vossas plantas estejam bem firmes no chão, para glorificar o Senhor Nosso Criador com o mundo e com a terra e com o trabalho humano.
Já contemplo, ao longo dos tempos, até o último dos meus filhos — porque somos filhos de Deus, repito — atuando profissionalmente, com a sabedoria de um artista, com a felicidade de um poeta, com a segurança de um professor e com uma modéstia mais persuasiva do que a eloquência, buscando — ao buscar a perfeição cristã em sua profissão e em seu estado no mundo — o bem de toda a humanidade.
Devemos amar todo tipo de trabalho humano, porque o trabalho é o meio para a santificação das almas e para a glória de Deus. Se o trabalho, qualquer trabalho humano honesto, é o meio, ninguém poderá pôr limites a este imenso mar de apostolado, a este panorama humano e divino que se apresenta diante dos nossos olhos.
Quando chegar o momento de cristalizar canonicamente — com as leis da Igreja — este nosso apostolado, diremos a mesma coisa: que é um mar sem margens, mas destacaremos alguns trabalhos concretos, porque é comum fazê-lo.
Vós e eu sabemos e cremos que o mundo tem como missão única dar glória a Deus. Esta vida só tem razão de ser na medida em que projeta o reino eterno do Criador. É por isso que São Paulo escreve: tudo quanto fizerdes, tanto em palavra como em ação, fazei-o em nome do Senhor Jesus, dando graças a Deus Pai por meio dele5. E lemos na primeira Epístola aos Coríntios: quer comais, quer bebais, fazei tudo para a glória de Deus6. Todos nós estamos, portanto, obrigados a trabalhar: porque o trabalho é um mandato de Deus, e devemos obedecer a Deus com alegria: servite Domino in laetitia7.
Assim o trabalho se torna sobrenatural, porque seu fim é Deus, e o trabalho é feito pensando nEle, como um ato de obediência. Não devemos abandonar o lugar em que a chamada do Senhor nos surpreendeu. Temos de converter nossa vida inteira em serviço a Deus: o trabalho e o descanso, o pranto e o sorriso. Na lavoura, na oficina, no ateliê, na atuação pública, devemos permanecer fiéis ao meio habitual de vida; converter tudo em instrumento de santificação e exemplo apostólico, sem nunca nos servirmos da Igreja ou da Obra: cada um com responsabilidade pessoal.
No trabalho ordinário, no seio da família e da sociedade, temos o compromisso pessoal de buscar a santidade, à qual somos chamados pelo simples fato de sermos cristãos, pois são claras as palavras do Mestre: sede perfeito, como vosso Pai celestial é perfeito8.
Vede o que escreveu São João Crisóstomo: a verdade é que todos os homens devem ascender à mesma altura; e o que perturba toda a terra é pensar que só o monge está obrigado a uma perfeição maior, e o resto pode viver à vontade. Mas não é assim! 9
Devemos procurar que todas as pessoas entendam que não se pode dividir os homens em duas categorias: os que trabalham e os que pensam que se rebaixam ao trabalhar. Porque hoje é evidente que o trabalho é um serviço que todos os cristãos estão obrigados a prestar, por amor a Deus e, por Ele, a toda a humanidade.
Aos que não querem entender, atrevo-me a dizer: qui parce seminat, parce et metet: et qui seminat in benedictionibus, de benedictionibus et metet10; quem semeia pouco, pouco colherá; e quem semeia a mãos cheias, a mãos cheias colherá. Com isto, acabo de vos dizer, com palavras do Apóstolo, que não basta trabalhar muito, mas que é preciso trabalhar com visão sobrenatural: caso contrário, não receberemos as bênçãos do céu.
Minhas filhas e filhos, quero contar-vos uma dor, uma grande dor: não me entendem. Há quatro anos venho dizendo a mesma coisa: e não entendem. É como se estivessem impermeabilizados. Parece que não lhes cabe, nem na cabeça nem no coração, tanto heroísmo cristão sem espetáculo. Mas a nossa generosidade, ainda que completa, é muito pouco se comparada com aquela generosidade infinita e amorosa do Deus-Homem, que se entrega ao sacrifício pela nossa salvação, dando até a última gota do seu sangue, até o último suspiro de sua vida. Por isso, nós também devemos procurar entregar-nos sem mesquinhez, atentos ao amor de Deus, embora não faltem as dificuldades.
São Mateus conta-nos: Jesus percorria todas as cidades e povoados, ensinando em suas sinagogas, pregando o evangelho do reino de Deus e curando todas as doenças e enfermidades. E, quando viu aquelas pessoas, compadeceu-se profundamente porque estavam maltratadas e abandonadas, aqui e ali como ovelhas sem pastor. Então, disse aos seus discípulos: a messe é realmente grande, mas os trabalhadores são poucos; rogai, pois, ao dono da messe que mande operários à sua messe11.
Dilacera o coração este grito do Filho de Deus, que se lamenta porque a messe é grande e os trabalhadores são poucos. Pedi comigo ao Senhor da messe que envie operários, pessoas de todas as raças e de todas as profissões e classes sociais, para trabalhar nesta Obra, com esse sentido sobrenatural: rogate ergo Dominum messis, ut mittat operarios in messem suam! Desta forma, serão muitas as almas que sentirão esta chamada divina, que acende em nós o desejo de buscar a perfeição no meio do mundo.
Se me perguntardes como se nota a chamada divina, como uma pessoa a percebe, direi que é uma nova visão da vida. É como se uma luz se acendesse dentro de nós; é um impulso misterioso que leva o homem a dedicar suas mais nobres energias a uma atividade que, com a prática, chega a tornar-se missão de vida. Essa força vital, que tem alguma semelhança com uma avalanche avassaladora, é o que outros chamam de vocação.
A vocação leva-nos — sem que o percebamos — a assumir uma posição na vida, que manteremos com entusiasmo e alegria, cheios de esperança até no próprio transe da morte. É um fenômeno que comunica um sentido de missão ao trabalho, que enobrece e valoriza a nossa existência. Jesus insere-se com um ato de autoridade na alma, na tua, na minha: essa é a chamada.
Tornam-se realidade estas palavras do Apocalipse: eis que estou à porta do teu coração e bato: se alguém ouvir a minha voz e me abrir a porta, entrarei e cearei com ele, e ele comigo12. Esta chamada de Deus é algo preciosíssimo. Vem-me à boca a parábola que São Mateus nos conta no capítulo treze do seu Evangelho: O reino dos céus é semelhante a um tesouro escondido no campo; se um homem o encontra, ele o esconde novamente e, feliz com o achado, vai, vende tudo o que tem e compra aquele campo. O reino dos céus também é semelhante a um comerciante que negocia com pérolas finas. E, chegando às suas mãos uma de grande valor, vai, vende tudo o que tem e a compra13. Nossa chamada é, portanto, quando a soubermos receber com amor, quando a soubermos estimar como algo divino, uma pedra preciosa de valor infinito.
Esta chamada é um tesouro escondido que nem todos encontram. Encontram-no aqueles a quem Deus verdadeiramente escolhe: pedir-se-á conta de muito a quem muito foi entregue14. Quando sintais essa graça de Deus, não vos esqueçais da parábola do tesouro escondido: quem qui invenit homo, abscondit, et prae gaudio illius vadit, et vendit universa quae habet, et emit agrum illum15: é tão humano e tão sobrenatural esconder os favores de Deus!
Vede como o Senhor procura os que Ele quer que o sigam. A Pedro e ao seu irmão André, que eram pescadores, quando estavam lançando as redes ao mar. Ouvi o que lhes diz: venite post me, et faciam vos fieri piscatores hominum16; vinde comigo e eu vos farei pescadores de homens. E Pedro e André, continuo, deixando tudo imediatamente, o seguiram.
Há outro que não foi chamado — conta-nos São Mateus no capítulo oitavo, versículos 19 e 20: Magister, Mestre, afirma, sequar te quocumque ieris, eu te seguirei para onde quer que fores. O Senhor respondeu-lhe: as raposas têm tocas e as aves do céu, ninhos, mas o Filho do homem não tem onde reclinar a cabeça. Não vos deveis assustar —minhas filhas e filhos — diante dos perigos, diante das contradições, diante da dureza no serviço a Deus.
Senhor — pede-lhe um de seus discípulos —, permite-me, antes de seguir-te, ir enterrar meu pai. Jesus respondeu-lhe: tu, segue-me e deixa que os mortos enterrem seus mortos17. E para aquele que lhe disse: eu te seguirei, Senhor, mas primeiro deixa-me ir despedir-me de minha casa, Jesus lhe respondeu: ninguém que, depois de ter posto a mão no arado, volta os olhos para trás é apto para o reino de Deus18.
Antes de prosseguir, para aqueles que tendes essa luz na alma, para os que vos sentis impelidos interiormente a buscar a perfeição cristã no mundo, digo que quem está preso a um vínculo ou compromisso espiritual — pela chamada —, se não quiser se enganar, é necessário que renuncie a qualquer conselheiro, a qualquer projeto que não esteja dentro desse vínculo. Agindo de outra forma, começariam tantos grupinhos quantos fossem os indivíduos, e o vínculo sobrenatural e civil ficaria sem efeito e poderia até se tornar prejudicial, porque se destruiria a obediência.
Meus filhos, quantas vezes se metem a julgar as almas dos outros, a aconselhar os outros, pessoas que nunca sentiram a inquietação pessoal daquele clamor divino: venite post me!19 Tende um profundo agradecimento por terdes recebido a chamada e pensai que a verdade — a vossa chamada — não tem mais que um caminho; e, dentro deste caminho, pode-se andar devagar, caminhar apressadamente, correr ou saltar: na Obra não quadriculamos as almas, nem metemos as criaturas em moldes de aço, com gestos, modos e palavras que estão fora da realidade do mundo: porque vivemos no mundo para Deus.
Aos que dizem que isto é uma utopia, respondo-lhes com a experiência que tenho de muitas almas e com estas palavras do Crisóstomo: onde estão agora aqueles que dizem que não é possível preservar a virtude a quem mora no meio da cidade, mas que é preciso retirar-se e viver nas montanhas? Como se não fosse possível ser virtuoso quem governa uma casa, tem mulher e cuida dos filhos20.
Em todos os estados, em todas as tarefas honestas, para adquirir a santidade, não tendo vocação religiosa, não se deve fugir do mundo. Estamos bem no lugar que ocupamos na terra. Estou certo de que a chamada —a chamada específica de que venho falando nesta carta — é para muitos: porque na Obra não há classismo, porque todas as almas interessam; e, portanto, são necessários todos os tipos de instrumentos. Iterum simile est regnum caelorum sagenae missae in mare, et ex omni genere piscium congreganti21; o reino dos céus também é semelhante a uma rede de arrasto que, lançada ao mar, apanha todo tipo de peixes.
Quando, pela boca de Jeremias, o Senhor prediz a futura libertação do povo hebreu que está no exílio e faz notar que, se antes os havia tirado do Egito, agora tirará os seus servos de terra Aquilonis et de cunctis terris22, penso que haverá muitas chamadas à Obra de Deus, sem discriminação. O Senhor os trará de todas as classes sociais, de todos os talentos, dos que estão acima, dos que estão abaixo e — como Jeremias volta a dizer — daqueles que estão nas entranhas da terra.
Ouvi o profeta: enviarei muitos pescadores, palavra de Javé, que os pescarão; e, depois, muitos caçadores, que os caçarão por todos os montes, por todas as colinas e pelas cavernas das rochas. Porque todos os seus caminhos estão à minha vista23.
Somos instrumentos nas mãos de Deus, qui omnes homines vult salvos fieri24, que quer que todos os homens sejam salvos. Meus filhos, por meio da formação verdadeiramente contemplativa do nosso espírito, devem sentir em suas almas a necessidade de buscar Deus, de encontrá-lo e tratá-lo sempre, admirando-o com amor em meio às fadigas do seu trabalho ordinário, que são cuidados terrenos, mas purificados e elevados à ordem sobrenatural; e também devem sentir a necessidade de converter toda a sua vida em apostolado, que brota da alma para se traduzir em obras exteriores: caritas mea cum omnibus vobis in Christo Iesu25, meu carinho por todos vós em Cristo Jesus.
Do que acabo de escrever, deduz-se que a unidade de vida é necessária para os filhos de Deus que Ele chamou à sua Obra. Uma unidade de vida que tem, simultaneamente, duas facetas: a interior, que nos torna contemplativos; e a apostólica, por meio do nosso trabalho profissional, que é visível e externo.
Volto a dizer-vos: a nossa vida é trabalhar e rezar, e vice-versa, rezar e trabalhar. Porque chega o momento em que não conseguimos distinguir entre esses dois conceitos, essas duas palavras, contemplação e ação, que acabam por significar a mesma coisa na mente e na consciência.
Vede o que diz São Tomás: quando, de duas coisas, uma é a razão da outra, a ocupação da alma numa delas não impede nem diminui a ocupação na outra... E como Deus é apreendido pelos santos como a razão de tudo o que fazem ou conhecem, sua ocupação em perceber as coisas sensíveis, ou em contemplar ou fazer qualquer outra coisa, de modo algum impede a sua contemplação divina, nem vice-versa26.
Para não perder esta unidade de vida, coloquemos o Senhor como fim de todo trabalho que temos de fazer non quasi hominibus placentes, sed Deo qui probat corda nostra27 ; não para agradar aos homens, mas a Deus que sonda os nossos corações. Além disso, devemos buscar a presença de Deus: quaerite Dominum et confirmamini, quaerite faciem eius semper28; buscai o Senhor e tornai-vos fortes, buscai sempre a sua face.
Elevai o coração a Deus quando chegar o momento duro da jornada, quando a tristeza quiser entrar na nossa alma, quando sentirmos o peso deste trabalho da vida, dizendo miserere mei Domine, quoniam ad te clamavi tota die: laetifica animam servi tui, quoniam ad te Domine animam meam levavi29; Senhor, tem misericórdia de mim, porque te invoquei o dia todo: alegra o teu servo, porque a ti, Senhor, levantei a minha alma.
Somos servos de Deus e filhos de Deus. Como seus servos, podemos nos alegrar ao ouvir essas palavras dos Atos dos Apóstolos: certamente derramarei o meu Espírito sobre os meus servos e servas naqueles dias, e eles profetizarão30. Como filhos de Deus, podemos contemplar com alegria o que São Paulo escreve aos Gálatas: digo também que, enquanto o herdeiro é criança, em nada difere de um servo, apesar de ser dono de tudo, pois está sob a potestade dos tutores e curadores, até o tempo determinado por seu pai.
Assim nós, quando ainda éramos crianças, vivíamos em servidão, sob os elementos do mundo; mas, quando o tempo se cumpriu, Deus enviou seu Filho, formado de uma mulher e sujeito à lei, para redimir os que estavam debaixo da lei, a fim de recebermos a adoção de filhos. E, porque sois filhos, Deus enviou aos vossos corações o Espírito do seu Filho, que nos faz clamar: Abba, meu Pai! E, assim, já nenhum de vós é servo, porém filho. E, sendo filho, é também herdeiro de Deus31.
Há duas figuras no Evangelho que — na hora da covardia geral — são valentes: José de Arimateia, que foi discípulo de Jesus, embora oculto; e um homem rico, Nicodemos. No meio deste terror geral, deste abandono em que ficara Cristo Jesus, rodeado apenas de mulheres — de sua Mãe, daquelas santas mulheres — e de um adolescente — João —, eles, que se ocultavam enquanto o Mestre estava vivo, reaparecem, conforme nos contam os Evangelistas. José, para pedir a Pilatos que o deixe recolher o Corpo. Nicodemos, para levar uma mistura de mirra e aloés, cerca de cem libras: valeria muito dinheiro.
Porém, embora se relacionassem com Jesus e o amassem, lembrai-vos daquela passagem de São João no capítulo III, do versículo um ao dez, quando o Senhor diz a Nicodemos: nisi quis renatus fuerit denuo, non potest videre regnum Dei; quem não nasceu de novo não pode ver o reino de Deus nem fazer parte dele. Nicodemos responde: quomodo potest homo nasci, cum sit senex?; como pode um homem nascer, sendo velho? Não vou repetir toda a passagem aqui. Nicodemos não era ignorante. Jesus pergunta-lhe: tu es magister in Israel et haec ignoras? Nisi quis renatus fuerit, havia doutrinado o Mestre, ex aqua et Spiritu Sancto non potest introire in regnum Dei; tu és mestre em Israel e ignoras estas coisas? Quem não nascer pelo Batismo da água e do Espírito Santo não pode entrar no reino de Deus. E alhures: sic est omnis qui natus est ex spiritu, o mesmo acontece com aquele que nasce do espírito.
A filiação divina é clara. Eles não a entendiam. Dai graças, porque sabeis que sois verdadeiros filhos de Deus, porque sabeis, como escreve São João, que Deus é justo; sabeis também que quem vive segundo a justiça, praticando as virtudes, é filho legítimo de Deus32.
Vou prosseguir advertindo-vos com São João: vede que terno amor o Pai teve por nós, querendo que nos chamemos filhos de Deus e o sejamos de fato. Caríssimos, nós agora já somos filhos de Deus33. São Paulo nos confirma nesta crença quando escreve: era coisa digna que aquele Deus, para quem e por quem são todas as coisas, tendo de conduzir muitos filhos adotivos à glória, consumasse ou imolasse pela paixão e morte o autor e modelo da salvação dos próprios filhos, Jesus Cristo Nosso Senhor. Porque aquele que santifica e os que são santificados têm todos a sua origem de um só, ou seja, todos eles têm natureza humana. Por isso, não desdenha de chamá-los de irmãos, dizendo: anunciarei o teu nome aos meus irmãos: no meio da Igreja cantarei os teus louvores. E em outro lugar: colocarei nele toda a minha confiança. E acrescenta: aqui estou eu e meus filhos, que Deus me deu34.
Mas, se não procurarmos viver como filhos de Deus, perderemos a confiança nEle, o que significa perder boa parte do Amor, e a vida será dura e amarga para nós. Não se esqueça de que não somos apenas filhos de Deus, mas irmãos de Jesus Cristo: primogênito in multis fratribus35. E que todo aquele que nasceu de Deus não peca, porque a semente de Deus, que é a graça santificante, habita nele; e, se não a joga fora de si, não pode pecar, porque é filho de Deus: nisto se distinguem os filhos de Deus dos filhos do diabo36.
Enchei-vos, pois, de confiança, porque Deus amou o mundo de tal maneira que não parou até dar o seu Filho Unigênito, para que todos aqueles que nele creiam não pereçam, mas vivam vida eterna. Porque Deus não enviou seu Filho ao mundo para condenar o mundo, mas para que, por seu intermédio, o mundo se salve; e para que todo aquele que nele creia não pereça, mas alcance a vida eterna37.
Como somos filhos de Deus, nosso maior amor, nossa maior estima, nossa mais profunda veneração, nossa mais rendida obediência, nosso maior afeto deve ser também para com o vice-Deus na terra, para com o Papa. Pensai sempre que, depois de Deus e de nossa Mãe, a Santíssima Virgem, na hierarquia do amor e da autoridade, vem o Papa. Por isso, muitas vezes digo: obrigado, meu Deus, pelo amor ao Papa que puseste em meu coração.
Tenhamos, portanto, plena e total confiança na Igreja e em Pedro. Não deixei de tê-la, embora algumas pessoas tenham tentado, ou melhor, o diabo tenha tentado, por meio de certos homens, semear dúvidas e sombras, procurando diminuir em mim — sem sucesso — esta confiança e este amor.
Meus filhos, vou contar-vos este pequeno episódio. Dar-me-á tanta alegria se um de vós, quando puder, o viva: desde há anos, na rua, todos os dias, rezei e rezo uma parte do Rosário pela Augusta Pessoa e pelas intenções do Romano Pontífice. Com a imaginação, coloco-me ao lado do Santo Padre, quando o Papa celebra a missa: eu não sabia, nem sei, como é a capela do Papa, e, no final do meu Rosário, faço uma comunhão espiritual, desejando receber de suas mãos Jesus Sacramentado.
Não vos surpreendais pelo fato de que aqueles que têm a sorte de estar materialmente próximos do Santo Padre me causem uma santa inveja, porque podem abrir-lhe o coração, porque podem manifestar-lhe sua estima e carinho.
Esta união que vivemos com o Romano Pontífice faz e fará com que nos sintamos unidíssimos em cada diocese ao Ordinário local. Costumo dizer, e é verdade, que nós puxamos e sempre puxaremos o carro na mesma direção que o Bispo. Se, alguma vez, um Rvmo. Ordinário não entendesse assim e pretendesse ver incompatibilidades que não podem existir, eu teria muita pena; mas, enquanto não tocasse no essencial, eu cederia: e vós deveríeis ceder também, sem dificuldade. Porque só nos move a viver nossa entrega o desejo de dar toda a glória a Deus, servindo a Igreja e todas as almas, sem buscar a glória para a Obra e sem buscar nosso proveito pessoal.
Prevendo essas possíveis dificuldades, embora me pareçam inverossímeis, para obter do Senhor desde o início da Obra esta união interna e externa com o Ordinário local e com todas as almas que trabalham em qualquer tipo de tarefa apostólica, vós sabeis que rezamos todos os dias pro unitate apostolatus. Uma unidade que só o Papa dá, para toda a Igreja; e o Bispo, em comunhão com a Santa Sé, para a diocese.
Sonho, minhas filhas e filhos, com esses oratórios, com esses sacrários, que se espalharão por todos os recantos do mundo para levar este espírito de Deus — da Obra de Deus — a todas as almas. E peço que, na parte material dos edifícios, sigais o costume, o modo de fazer, do local em que estiverdes. Mas me dá muita pena ver essas igrejas que parecem garagens, essas imagens que são uma caricatura, que são uma zombaria: não as coloqueis nunca em nossos oratórios.
A arte sacra deve conduzir a Deus, deve respeitar as coisas santas; está voltada para a piedade e a devoção. Durante muitos séculos, a melhor arte foi a religiosa, porque se submetia a essa regra; porque preservava, em tudo, a natureza própria do seu fim. Essas imagens modernistas e caricaturescas são tão pouco oportunas quanto as imagens repintalgadas de gesso: o que é feio e pouco respeitoso é tão ruim quanto o que é melífluo e cafona.
Nenhum desses dois extremos serve à nossa piedade. O arquiteto, o escultor, o pintor que queira contribuir com a sua arte pessoal para o culto divino deve ater-se a regras claras. Com isso não estou dizendo que é preciso pintar o céu de joelhos, como Fra Angelico, mas é preciso pintá-lo com respeito, com unção, com devoção.
Nestes tempos de laicismo, destacam-se dois tipos de pessoas: os que atacam a Igreja de fora e os que a atacam de dentro, valendo-se da própria Igreja. Uns deles — aqueles que atacam de fora — são laicistas, dizem; os que atacam de dentro, não sei como chamá-los: vamos chamá-los de pietistas. O espírito da Obra está em não nos servirmos da Igreja, mas em servir a Igreja.
E, para isso, não envolver a Igreja com coisas terrenas; por sermos filhos da Igreja e havermos recebido uma chamada específica de Deus, levamos a Deus todas as coisas da terra, mas não chamamos as nossas obras de católicas: o mundo inteiro já vê que o são.
Não colocamos nomes de santos nas nossas tarefas de apostolado, porque não é necessário nem conveniente. E, se fosse, outros já o fazem: que nos deixem servir a Santa Igreja por nossa própria conta e risco, sem comprometê-la. O contrário — servir-se da Igreja, para nela amparar a vida profissional, social e política — parece-me um falso amor pela Esposa de Jesus Cristo: e, humanamente falando, um modo de agir pouco limpo, feio.
No entanto, há quem não nos compreenda, e alguns até com reta intenção: acreditam que a Igreja perderá prestígio se nossas obras futuras, nossos labores, nossas tarefas não levarem o nome de católicos. Essa opinião cai por si só, não tem nenhuma força, porque todo o mundo verá que serão cidadãos católicos que farão o trabalho; e que, portanto, a sua tarefa redundará em honra da Igreja. Outros pensam que assim estaremos menos sujeitos à autoridade eclesiástica: estaremos sujeitos tal como os que mais estão. Queremos e procuramos viver sempre dentro das disposições às quais os cristãos devem se submeter.
Eu desejaria que essas pessoas, que neste quase início do nosso trabalho não nos entendem, abrissem a Sagrada Escritura, no livro do Gênesis, capítulo XXXII, e vissem as disposições que Jacó tomou quando temeu que seu irmão Esaú destruísse sua família e suas riquezas. Conta a Escritura que ele fez dois grupos com as pessoas de sua cidade e seus rebanhos, de modo que um fosse para uma parte e outro, para outra; e pensou razoavelmente: se Esaú vier contra um grupo, o outro se salvará.
Embora este não seja o motivo pelo qual o Senhor criou a Obra — o motivo é recordar a todos os homens seu dever de santidade, por meio de seu trabalho ordinário no mundo, em sua profissão e em seu estado —, mesmo não sendo este o motivo, ninguém pode negar que as circunstâncias de hoje, como todas as dos séculos passados — e não podemos esperar mais dos tempos vindouros —, fazem com que julguemos muito prudente a decisão de Jacó.
Gostaria também que essas pessoas incapazes de nos compreender lançassem um olhar ao seu redor — não a um país, mas a todos ou quase todos os países que são ou foram cristãos — e prestassem atenção a tantas empresas privadas, comerciais, industriais, hoteleiras etc. que têm o nome de um santo.
Respeito a experiência contrária, mas realmente sofro ao contemplar que em não poucas ocasiões o nome do santo, ou de católico, ou de cristão, pode servir de bandeira para encobrir a mercadoria avariada. Não me importo de deixar por escrito o que tantas vezes digo oralmente: que, quando leio — porque existem, existem! — uma mercearia, loja, ou casa, ou negócio de São... — de um santo —, penso logo, com pouco temor de me enganar, que lá o quilo tem novecentos gramas.
Meus filhos, não foi murmuração, não exagerei na dose; contei uma parte do que vi, pois me pareceu necessário para evitar o escândalo dos que não se escandalizam daqueles que têm o cristianismo ou o catolicismo como instrumento oficial para as suas empresas e suas ambições.
Mas deixemo-los e pensemos, devagar, sobre o que está no cerne do nosso trabalho profissional. Dir-vos-ei que é uma única intenção: servir. Porque no mundo, agora, é clara a importância da missão social de todas as profissões: até a caridade tornou-se social, até o ensino tornou-se social.
Para tudo que seja servir ao próximo, existe uma técnica que o Estado tenta tomar em suas mãos. Portanto, cada um dos filhos de Deus em sua Obra deve sobrenaturalizar o exercício do seu trabalho, do seu ofício, servindo verdadeiramente com sentido sobrenatural o próximo, a pátria, a Deus. Ao servir diretamente a Igreja — não os eclesiásticos —, servi-a sem cobrar; porque há muitos leigos que não trabalham pela Igreja se não forem pagos. Esta é a orientação que vos dou, a que recebemos de Deus: não cobrar, servindo à Igreja; pagar, pagar, pagar mesmo dando toda a nossa vida.
Falamos de servir: o melhor serviço que podemos prestar à Igreja e à humanidade é dar doutrina. Grande parte dos males que afligem o mundo devem-se à falta de doutrina cristã, mesmo entre aqueles que querem ou aparentam querer seguir Jesus Cristo de perto. Porque há quem, em vez de dar boa doutrina, se serve da ignorância dos outros para semear confusão. Chega-se, assim, até a negar a existência da lei natural, impressa por Deus em cada alma. E o ambiente do mundo enche-se de indolência religiosa, que na realidade nada mais é do que ignorância ou presunção; não é o satânico non serviam, mas a absoluta carência de luz.
Há pessoas que se fazem passar por sábias e afirmam que religião e ciência são coisas antitéticas, que se abriu um abismo aparentemente impreenchível: é o domínio do materialismo em todas as suas formas. Mas qualquer pessoa piedosa sabe preencher esse abismo. Nós, filhos de Deus em sua Obra, temos de procurar, com a graça do Senhor e com o estudo, que essa oposição desapareça, fazendo, com a ciência profana unida ao conhecimento teológico e ao exemplo de nossa vida, a apologia da Fé.
Todo o nosso trabalho tem, portanto, realidade e função de catequese. Temos de dar doutrina em todos os ambientes; e, para isso, precisamos acomodar-nos à mentalidade de quem nos escuta: dom de línguas. Dom de línguas que nos obriga a falar com conteúdo: de fato, irmãos, escreve São Paulo, se eu fosse ter convosco falando em línguas, de que vos serviria se não falasse instruindo-vos com a Revelação, ou com a ciência, ou com a profecia, ou com a doutrina?38 Logo, há obrigação de se formar: uma obrigação de nos formarmos bem doutrinalmente, uma obrigação de nos prepararmos para que entendam; para que, além disso, quem nos escute saiba depois se expressar.
São Paulo continua: se a língua que falais não for inteligível, como se poderá saber o que dizeis? Não falareis senão ao ar. O dom de línguas obriga-nos a compreender os outros. É também o Apóstolo quem nos ensina: existem muitas línguas diferentes no mundo, e não há povo que não tenha a sua. Portanto, se eu não souber o que significam as palavras, serei um bárbaro ou um estrangeiro para aquele a quem eu falar, e aquele que falar comigo será um bárbaro para mim39.
Não basta dar doutrina de modo abstrato, desvinculado: antes eu vos dizia que é preciso fazer a mais fervorosa apologia da Fé, com a doutrina e com o exemplo da nossa vida, vivida com coerência. Devemos imitar Nosso Senhor, que fazia e ensinava, coepit facere et docere40: o apostolado de dar doutrina fica aleijado e incompleto se não for acompanhado pelo exemplo. Há um dito na sabedoria popular que deixa muito claro o que vos estou dizendo. E o dito é este: frei exemplo é o melhor pregador.
Nunca acreditei na santidade dessas pessoas que são chamadas de santos leigos. Sobre elas dizem que levam uma vida íntegra e que, ao mesmo tempo, professam-se ateus. Mas o Espírito Santo diz, por meio de São Paulo, que as perfeições invisíveis de Deus, incluindo seu eterno poder e sua divindade, tornaram-se visíveis após a criação do mundo, pelo conhecimento que delas nos dão suas criaturas41. Por isso, no melhor dos casos, respeitarão alguns preceitos da lei natural — nem mesmo todos, porque a lei natural os obriga a admitir a existência de Deus —, mas sua vida não ilumina, porque se distanciaram da luz de Cristo, lux vera, quae illuminat omnem hominem42; luz verdadeira, que ilumina todos os homens.
É necessário, portanto, imitar Jesus Cristo — dizia-vos —, para o dar a conhecer com a nossa vida. Sabemos que Cristo se fez homem para introduzir todos os homens na vida divina, para que — unindo-nos a Ele — vivêssemos individual e socialmente a vida de Deus. Ouvi o que diz São João: non enim misit Deus Filium suum in mundum ut iudicet mundum, sed ut salvetur mundus per ipsum43; Deus não enviou seu Filho ao mundo para condenar o mundo, mas para que o mundo seja salvo por Ele.
Correspondendo à chamada que recebemos de Deus, o exemplo que devemos dar, para corredimir com Cristo, exige de nós — de vós e de mim — um trabalho realizado de modo laical e secular: para fazer um trabalho eclesiástico — próprio dos eclesiásticos — já existem os sacerdotes e religiosos. Não devemos realizar nossa tarefa nas igrejas, mas em plena vida civil, no meio da rua. Daí nosso dever de nos fazermos presentes, com o exemplo, com a doutrina e de braços abertos a todos, em todas as atividades humanas.
Vejo com alegria os leigos que se colocam ao serviço da Igreja, para levar, juntamente com os sacerdotes, uma vida de trabalho nas diversas associações piedosas de fiéis. Mas a nós o Senhor pede um apostolado capilar, de irradiação apostólica em todos os ambientes. Não podemos ter uma vida rasa, medíocre, de compromisso formal. Com isto não quero dizer que os fiéis que colaboram com os sacerdotes nas tarefas eclesiásticas tenham a vida rasa, porque eles também fazem, de outro modo, um ótimo trabalho.
Nosso trabalho desenvolve-se, todos os dias, no meio das centenas de pessoas com as quais estamos em contato desde o momento em que despertamos pela manhã até o final da jornada: parentes, empregados, colegas de trabalho, clientes, amigos. Em cada uma delas temos de reconhecer Cristo, temos de ver Jesus, como nosso irmão, em cada uma delas; e assim será mais fácil que nos prodigalizemos em serviços, atenção, carinho, paz e alegria.
Este nosso ideal, traduzido em obras, aproximará muitas almas da Igreja, e muitos jovens, muitos homens maduros e muitos idosos, com generosidade e coragem, virão também juntar-se a nós, ombro a ombro, no serviço a Deus em sua Obra.
Devemos rejeitar o preconceito de que os fiéis comuns não podem fazer nada além de se limitar a ajudar o clero em apostolados eclesiásticos. O apostolado dos leigos não tem por que ser sempre uma simples participação no apostolado hierárquico: compete a eles, especialmente aos filhos de Deus na sua Obra, por terem uma vocação divina como membros do povo de Deus, o dever de fazer apostolado. E isso não porque recebam uma missão canônica, mas porque são parte da Igreja; realizam essa missão — repito – por meio da sua profissão, do seu ofício, da sua família, dos seus colegas, dos seus amigos.
No entanto, a maioria das pessoas não consegue ver a eficácia apostólica das ações dos leigos como fiéis comuns quando eles simplesmente se dedicam ao seu trabalho ordinário e dão, assim, exemplo com suas vidas, aproveitando todas as circunstâncias para dar doutrina. Os que pensam assim ficam com uma visão encolhida, e acrescento ainda que fica mais encolhida em nosso caso: porque alcançaremos toda essa eficácia que eles mal vislumbram, por meio da nossa entrega completa, da nossa correspondência à chamada divina que recebemos do Senhor: ecce ego quia vocasti me44.
Quem não vê a eficácia apostólica e sobrenatural da amizade esqueceu-se de Jesus Cristo: eu já não vos chamo servos, mas amigos45. E também da amizade com os seus apóstolos, com os seus discípulos, com a família de Betânia: com Marta, Maria e Lázaro. E daquelas cenas que São João nos narra antes da ressurreição de Lázaro, daquele et lacrimatus est Iesus46: esquecem as palavras cheias de confiança das duas irmãs quando querem comunicar a Jesus Cristo a doença de Lázaro, enviando-lhe esta mensagem: Senhor, olha que aquele que amas está doente47.
Há na Escritura, filhas e filhos da minha alma, uma infinidade de textos em que se fala da amizade, mas vou contar-vos apenas um, que aparece na primeira epístola de São Pedro; no capítulo V, versículo 13, quando, referindo-se a Marcos, o chama: Marcus filius meus.
Com uma amizade leal e desinteressada, o apostolado do exemplo torna-se mais eficaz; mas o exemplo deve ser dado sempre, não só aos amigos, mas também aos que não nos conhecem, e mesmo aos que nos são hostis. Pelo exemplo, cada um de vós torna-se outro Cristo, qui pertransiit benefaciendo et sanando omnes48, que passou fazendo o bem e curando a todos.
O exemplo não se dá apenas com boas palavras, mas com obras. Aqueles que pretendem agir de outro modo merecem ouvir e devem meditar nesta passagem da Escritura: então Jesus falou ao povo e aos seus discípulos e disse-lhes: os escribas e fariseus sentaram-se na cátedra de Moisés; praticai, pois, e fazei tudo o que eles vos disserem; mas não os imiteis nas obras, porque dizem o que se deve fazer e não o fazem. Amarram cargas pesadas e as colocam nos ombros dos outros, mas nem sequer tentam movê-las com um dedo49.
Palavras e ações, fé e conduta, em unidade de vida, já o dissemos em outra ocasião. Agir de outra forma, fazer as coisas por vaidade, para ser visto, com espetáculo, mereceu estas palavras que saíram da boca de Cristo: omnia vero opera sua faciunt ut videantur ab hominibus50, fazem todas as coisas para serem vistos pelos homens.
Que adianta?, pergunta São Tiago em sua epístola católica, que adianta, meus irmãos, alguém dizer que tem fé, se não tem obras? Porventura esse tipo de fé poderá salvá-lo? E acrescenta: assim como o corpo sem o espírito está morto, assim também a fé sem as obras está morta51.
É melhor ser cristão sem o dizer do que dizê-lo sem o ser. Ensinar é uma coisa ótima, mas com a condição de que se pratique o que se ensina. Temos um único Mestre, aquele que falou e todas as coisas foram feitas; as próprias obras que Ele fez em silêncio são dignas do Pai. Quem compreende verdadeiramente a palavra de Jesus pode compreender também o seu silêncio; e então será perfeito, porque agirá de acordo com sua palavra e se manifestará através do seu silêncio52.
Estais obrigados a dar exemplo, meus filhos, em todos os campos, também como cidadãos. Deveis esforçar-vos por cumprir os vossos deveres e exercer os vossos direitos. Por isso, ao desenvolver a nossa atividade apostólica, como cidadãos católicos, observamos as leis civis com o maior respeito e acatamento, e sempre nos esforçamos por trabalhar no âmbito dessas leis.
Com a chamada divina e a formação específica, devemos ser sal da terra e luz do mundo53, pois estamos obrigados a dar exemplo com um santo descaramento: vir quidem non debet velare caput suum quoniam imago et gloria Dei est54. Somos imagem de Deus: portanto, assim brilhe a vossa luz diante dos homens, para que vejam as vossas boas obras e glorifiquem vosso Pai que está nos céus55. Mas não temos de nos exibir, não temos de ser como aqueles vendedores de bugigangas que carregam toda a sua mercadoria descoberta, a fim de atrair, mas antes agir com naturalidade: se virem, que vejam.
Lembrai-vos daquela pergunta de São Pedro ao Senhor, depois que Jesus explicou a parábola do pai de família que guarda sua casa. São Pedro perguntou: Senhor, dizes esta parábola para nós ou, igualmente, para todos? O Senhor respondeu-lhe: quem pensas que é aquele administrador fiel e prudente, a quem seu amo constitui como mordomo de sua família, para distribuir a cada um no devido tempo a medida de trigo ou o alimento oportuno?56
Portanto, todos nós que formamos a Obra estamos obrigados a administrar aos que nos cercam o alimento da palavra de Deus, da doutrina de Deus. E, então, o que o Mestre disse também se dirige a nós, como uma promessa de prêmio: feliz é esse servo se seu amo, em seu retorno, o encontra cumprindo assim seu dever57. Esta administração da doutrina, com o exemplo, com a palavra, por escrito, por meio da amizade etc., este nosso ensinamento deve ser feito com discrição, para que aqueles que demoram a compreender não se afastem de Jesus.
Tende em mente o que São Mateus diz sobre Ele: et sine parabolis non loquebatur eis58, acomodava-se à mentalidade do ambiente. Eu disse que temos de nos acomodar ao ambiente, mas não nos adaptar ao ambiente, ao ambiente mundano: existe o perigo de se adaptar, por covardia, por comodismo ou — é triste — para satisfazer as paixões más. E assim nos juntamos ao grupo dos desanimados. Não! Este não é o caminho; que não se diga de nós: esses tais são do mundo e, por isso, falam a linguagem do mundo59; mas o que Jesus disse a seu Pai: assim como tu me enviaste ao mundo, também eu os enviei ao mundo60.
Há outra razão de justiça que nos obriga a dar exemplo: não difamar os nossos irmãos da Obra. Aquela frase absolutamente ilógica, ab uno disce omnes61, é, infelizmente, muitas vezes, a regra habitual para julgar. O nosso exemplo deve ser constante: tudo deve ser ocasião de apostolado, meio de dar doutrina, mesmo que tenhamos fraquezas.
Sem medo. E, para não ter medo, não ter culpa. Se houver alguma fraqueza, recomendo que repitais as palavras de Pedro a Jesus, que eu repito habitualmente, após cada um dos meus erros: Domine, tu omnia nosti, tu scis quia amo te62; Senhor, tu sabes de todas as coisas, tu sabes que te amo.
O conhecimento dos nossos erros nos torna humildes, faz com que nos aproximemos mais do Senhor. Além disso, devemos ter em conta que, enquanto estivermos na terra, pela providência do Senhor, teremos equívocos, erros. Tiago escreve sobre Elias que ele era um homem pecador, como nós; porém, depois fez novamente oração, e o céu deu a chuva, e a terra produziu seus frutos63.
A atuação de cada um de nós, filhos, é pessoal e responsável. Devemos procurar dar bom exemplo a cada pessoa e à sociedade, porque um cristão não pode ser individualista, não pode ignorar os outros, não pode viver de forma egoísta, dando as costas ao mundo: é essencialmente social, membro responsável do Corpo Místico de Cristo.
Com esta dedicação ao fim que engloba todos os outros fins específicos — que não são senão meios para aquele fim de que falei antes, que é dar doutrina —, nosso trabalho apostólico contribuirá para a paz, para a colaboração dos homens entre si, para a justiça, para evitar a guerra, para evitar o isolamento, para evitar o egoísmo nacional e os egoísmos pessoais: porque todos compreenderão que fazem parte da grande família humana, que se dirige à perfeição, por vontade de Deus.
Assim contribuiremos para afastar esta angústia, este temor de um futuro de rancores fratricidas, bem como para confirmar a paz e a concórdia nas almas e na sociedade: a tolerância, a compreensão, o relacionamento, o amor.
Dir-vos-ei com o apóstolo Tiago: jamais tenteis conciliar a fé de Nosso Senhor Jesus Cristo com a acepção de pessoas, porque se um homem com um anel de ouro e roupas preciosas entra em vossa casa e um homem pobre e mal vestido entra ao mesmo tempo, e fixais os olhos naquele que vem com um vestido brilhante e dizeis a ele: senta-te aqui neste bom lugar, dizendo pelo contrário ao pobre: tu fica aí em pé ou senta-te aqui aos meus pés, não fica patente que formais um tribunal injusto dentro de vós e vos tornais juízes de sentenças injustas? Não é verdade que Deus escolheu os pobres deste mundo para torná-los ricos na fé e herdeiros do reino que prometeu aos que o amam? Vós, pelo contrário, teríeis feito afronta ao pobre. Não são os ricos que vos tiranizam e não são eles mesmos que vos arrastam aos tribunais?64
Isso não significa que não tenhamos obrigação de atender aos poderosos: devemos procurar trabalhar também com aquelas almas que mais influenciam as massas, o povo, sejam essas pessoas vindas de cima ou de baixo: também nisso não admitimos acepção de pessoas.
O apostolado do exemplo respeita a liberdade de todos, mas faz com que a glória de Deus se manifeste e transforme os homens, porque o Senhor é espírito, e onde está o espírito do Senhor aí há liberdade. E assim todos nós, contemplando com rosto descoberto, como num espelho, a glória do Senhor, somos transformados na própria imagem de Jesus Cristo, avançando de claridade em claridade, como iluminados pelo espírito do Senhor65.
Tenho-vos falado, minhas filhas e filhos, sobre a obrigação que nos urge — caritas Christi urget nos66 a ajudar Cristo Nosso Senhor em sua divina tarefa de Redentor de todas as almas, consumada quando Jesus morreu em vergonha e glória na Cruz — iudaeis quidem scandaloum, gentibus autem stultitiam67; escândalo para os judeus, loucura para os gentios — e que, pela vontade de Deus, continuará até que chegue a hora do Senhor.
Esta obrigação incumbe a todos os cristãos: e, por um título especialíssimo — a chamada que recebemos —, é onus et honor, carga e honra para os filhos de Deus em sua Obra. O Senhor pede-nos que o levemos, com nossa conduta exemplar e com um constante apostolado de dar doutrina, a todos os homens que cruzarem nosso caminho: um apostolado que haveis de fazer em e a partir do vosso próprio trabalho profissional, em vosso próprio estado.
Na ação apostólica, não devemos nos deixar levar por nenhuma acepção de pessoas, nem excluir nenhuma atividade humana, porque todas as ocupações honestas, todos os ofícios honrados, serão para nós motivos de santificação e meio eficaz de apostolado, que nos dará a oportunidade de atrair outras almas à busca sincera e generosa da santidade no meio do mundo.
Por isso tenho afirmado, e repito-vos, que deveis dar exemplo, sendo assim testemunhas de Jesus Cristo em todos os campos da atividade humana, aos quais levareis a boa semente que recebestes para serdes semeadores de Deus, sal que tempere as almas que ainda não provaram ou se esqueceram do sabor da mensagem evangélica, luz que ilumine os que jazem nas trevas do erro ou da ignorância.
Em todos os campos em que os homens trabalham — insisto —, também vós deveis estar presentes, com o maravilhoso espírito de serviço dos seguidores de Jesus Cristo, que não veio para ser servido, mas para servir68: sem abandonar imprudentemente — seria um erro gravíssimo — a vida pública das nações, na qual atuareis como cidadãos comuns, que é o que sois, com liberdade pessoal e com responsabilidade pessoal.
A presença leal e desinteressada no terreno da vida pública oferece imensas possibilidades de fazer o bem, de servir: os católicos não podem — vós não podeis, meus filhos — desertar desse campo, deixando as tarefas políticas nas mãos dos que não conhecem ou não praticam a lei de Deus, ou dos que se mostram inimigos de sua Santa Igreja.
A vida humana, tanto privada como social, está inevitavelmente em contato com a lei e com o espírito de Cristo Nosso Senhor: os cristãos, por conseguinte, facilmente descobrem uma compenetração recíproca entre o apostolado e o ordenamento da vida por parte do Estado, ou seja, a ação política. As coisas que são de César devem ser dadas a César; e as que são de Deus, devem ser dadas a Deus, disse Jesus69. Infelizmente, é comum que não se queira seguir este preceito tão claro e que se confundam os conceitos, desembocando em dois extremos igualmente desordenados: o laicismo, que ignora os legítimos direitos da Igreja; e o clericalismo, que subjuga os direitos, também legítimos, do Estado. É necessário, meus filhos, combater estes dois abusos por meio de leigos que se sintam e sejam filhos de Deus, bem como cidadãos das duas Cidades.
A política, no nobre sentido da palavra, nada mais é do que um serviço para a realização do bem comum da Cidade Terrena. Mas este bem tem uma extensão muito grande, e, consequentemente, é no campo político que se debatem e ditam leis da mais alta importância, como as que dizem respeito ao casamento, à família, à escola, ao mínimo necessário de propriedade privada, para a dignidade — os direitos e deveres — da pessoa humana. Todas essas questões, e outras, interessam principalmente à religião e não podem deixar um apóstolo indiferente ou apático.
A Obra não tem qualquer política: esse não é o seu fim. Nossa única finalidade é espiritual e apostólica, e tem um selo divino: o amor à liberdade, que Jesus Cristo nos conseguiu ao morrer na Cruz70. Por isso, a Obra de Deus não entrou e nunca entrará na luta política dos partidos: não é apenas louvável, mas um estrito dever da nossa Família sobrenatural manter-se acima das disputas contingentes que envenenam a vida política, devido à simples razão de que a Obra — volto a afirmar — não tem finalidades políticas, mas apostólicas.
Mas vós, meus filhos — cada um pessoalmente —, não só cometeríeis um erro, como acabei de dizer, mas trairíeis a causa de Nosso Senhor se deixásseis o campo livre para que dirijam os negócios do Estado os indignos, os incapazes ou os inimigos de Jesus Cristo e de sua Igreja.
Não pretendo com isto afirmar que todos os cidadãos não cristãos sejam indignos ou incapazes, nem que todos vós deveis intervir dia após dia nas lides políticas. Para muitos — a maioria —, bastará que tenham um critério seguro em tudo o que diz respeito à Igreja; que saibam dar a sã doutrina – que não é política, mas religiosa – a seus amigos e colegas; e, finalmente, que cumpram com retidão seus deveres cívicos, quando o governo do país assim o solicitar.
Outros, pelo contrário, terão inclinação para se dedicar às questões políticas; não serão politiqueiros, que vivem apenas de esquemas e compromissos para garantir um cargo, do qual se alimentam, na vida pública de sua pátria, capazes de vender direitos de primogenitura por um prato de lentilhas71, mas homens que aliam sua vida profissional a um desejo de servir – nunca de dominar – os seus concidadãos, na vida política ou nas organizações sindicais.
Digo a todos vós: os que tenhais vocação política, atuai livremente neste terreno, sem abdicar dos direitos que vos competem como cidadãos; e buscai aí a vossa santificação, enquanto servis à Igreja e à pátria, buscando o bem comum para todos da maneira que vos pareça mais conveniente, porque no temporal não há dogmas.
Os demais, cumprais sempre fielmente os vossos deveres e exigi que vossos direitos sejam respeitados. E todos vós atuai livremente, porque é próprio da nossa peculiar vocação divina a santificar-nos, trabalhando nas tarefas ordinárias dos homens segundo os ditames da própria consciência, sentindo-nos pessoalmente responsáveis pelas nossas atividades livremente decididas, dentro da fé e da moral de Jesus Cristo.
Livremente: porque o vínculo que nos une é apenas espiritual. Estais vinculados uns aos outros, e cada um com a Obra inteira, somente no âmbito da busca da própria santificação e no campo — também exclusivamente espiritual — de levar a luz de Cristo aos vossos amigos, às vossas famílias, àqueles que vos cercam.
Sois, portanto, cidadãos que cumprem os seus deveres e exercem os seus direitos, e que estão associados na Obra apenas para se ajudarem espiritualmente a buscar a santidade e a exercer o apostolado, com uns meios ascéticos e uns modos apostólicos peculiares. A finalidade espiritual da Obra não faz distinção entre raças ou povos — ela só vê almas —, e por isso exclui-se qualquer ideia de partido ou perspectiva política.
E assim em tudo: naquilo que não se refere ao espírito e ao apostolado da Obra, estais unidos apenas por um compromisso de fé, de moral e de doutrina social, que é o espírito da Igreja Católica e, portanto, de todos os fiéis.
Este compromisso de doutrina e de vida que a Igreja Católica nos dá e que vos impulsiona, meus filhos, a servir a Deus servindo vossa pátria materializa-se em alguns pontos firmes e inabaláveis da verdade. São princípios indiscutíveis que constituem o denominador comum — vinculum fidei — não vossos, não dos meus filhos, mas de todos os católicos, de todos os filhos fiéis da Santa Madre Igreja.
Digo-vos, a este respeito, qual é o meu grande desejo: gostaria que, no catecismo da doutrina cristã para crianças, se ensinasse claramente quais são esses pontos firmes, sobre os quais não se pode ceder quando se atua de uma forma ou de outra na vida pública; e que, ao mesmo tempo, se afirmasse o dever de agir, de não se abster, de prestar a própria colaboração para servir o bem comum com lealdade e com liberdade pessoal. Este é um grande desejo meu, porque vejo que assim os católicos aprenderiam estas verdades desde crianças e saberiam praticá-las mais tarde quando fossem adultos.
De fato, mesmo entre os católicos que parecem responsáveis e piedosos, é frequente o erro de pensar que eles são obrigados a cumprir apenas os seus deveres familiares e religiosos, e dificilmente querem ouvir falar de deveres cívicos. Não se trata de egoísmo: é simplesmente falta de formação, porque nunca ninguém lhes disse claramente que a virtude da piedade — parte da virtude cardeal da justiça — e o sentido da solidariedade cristã concretizam-se também neste estar presente, neste conhecer e contribuir para resolver os problemas que interessam a toda a comunidade.
É claro que não seria razoável pretender que todo cidadão fosse um profissional da política; isto, aliás, é materialmente impossível hoje, mesmo nas sociedades mais reduzidas, devido à grande especialização e à completa dedicação que todas as tarefas profissionais exigem, entre elas a própria tarefa política.
Mas é possível, e se deve exigir, um mínimo de conhecimento dos aspectos concretos que o bem comum adquire na sociedade em que cada um vive, em determinadas circunstâncias históricas; e pode-se exigir também um mínimo de compreensão da técnica — das possibilidades reais e limitadas — da administração pública e do governo civil, porque sem esta compreensão não pode haver uma crítica serena e construtiva, nem opções sensatas.
É, portanto, conveniente que existam muitas possibilidades de adquirir um profundo sentido social e de cooperação para alcançar o bem comum. Já vos falei desta medida concreta do catecismo; mas, também no campo da pedagogia escolar — da formação humana —, seria bom que os professores, sem impor critérios pessoais naquilo que é opinável, ensinassem o dever de atuar livre e responsavelmente no campo das tarefas cívicas.
Mas voltemos à Obra e a vós, meus filhos. Já sabeis que, como Nosso Senhor, também eu gosto de usar parábolas, recorrendo sobretudo àquelas imagens de pesca — barcos e redes —, que têm um sabor tão evangélico. Nós somos como peixes apanhados numa rede. O Senhor pescou-nos com a rede do seu amor, entre as ondas deste nosso mundo revolto; porém, não para nos tirar do mundo — do nosso ambiente, do nosso trabalho ordinário —, mas para que, sendo do mundo, sejamos ao mesmo tempo totalmente dEle. Non rogo ut tollas eos de mundo, sed ut serves eos a malo72; não te peço que os tires do mundo, mas que os preserves do mal.
Além disso, esta rede, que nos une a Cristo e nos mantém unidos entre nós, é uma rede amplíssima, que nos deixa livres, com responsabilidade pessoal. Porque a rede é o nosso denominador comum — pequeníssimo — de cristãos que querem servir a Deus na sua Obra; é a formação católica que nos leva a cumprir com a máxima fidelidade o Magistério da Igreja.
Porque somos livres como peixes na água, e porque fomos apanhados na rede de Cristo, não confundimos a Igreja com os erros pessoais de nenhum homem e não toleramos que alguém confunda os nossos próprios erros pessoais com os da Igreja. Não existe o direito de envolver a Igreja com a política, com a atuação política, mais ou menos acertada e sempre opinável, de cada um: isso é muito cômodo e muito injusto. Também não se tem o direito de envolver a Obra com os erros ou acertos de cada um de vós.
Se houver erros, será em parte porque é quase impossível não os cometer, tratando-se de uma tarefa tão complexa como essa, na qual ninguém pode ter plenamente nas mãos os inúmeros dados envolvidos em qualquer problema grave. Mas, mesmo no caso de erros que poderiam ter sido evitados — erros por negligência, falta de prudência etc. —, a Igreja ou a Obra não devem arcar de forma alguma com esta responsabilidade.
Porque a verdade é que, se houver erros deste tipo, será sempre apesar da Igreja, apesar da Obra, que incentivam todos os seus filhos a cumprir com a maior perfeição humana possível — pois, sem essa perfeição humana, não se pode aspirar à perfeição sobrenatural — todas as suas tarefas pessoais.
Em suma: deveis estar presente de forma ativa, livre e responsável na vida pública. Refiro-me à obrigação de trabalhar neste terreno da forma que melhor corresponda à mentalidade de cada um, às circunstâncias e necessidades do país etc. Se vos falo deste tema é porque tenho o dever de vos dar critérios, e o faço como sacerdote de Jesus Cristo e como vosso Padre, sabendo que é minha responsabilidade estar acima de facções e interesses de grupo.
Nunca vos perguntei, nem jamais perguntarei — e o mesmo farão os Diretores da Obra em todo o mundo —, o que cada um pensa sobre estas questões, porque defendo a vossa legítima liberdade. Eu sei — e não tenho nada a dizer contra isso — que entre vós, minhas filhas e filhos, há uma grande variedade de opiniões. Respeito todas elas; sempre respeitarei qualquer opção temporal de cada um dos meus filhos, desde que esteja dentro da Lei de Cristo.
Meus critérios pessoais em assuntos políticos não são do vosso conhecimento, porque eu não os manifesto: e, quando houver sacerdotes na Obra, eles deverão seguir a mesma regra de conduta, pois a sua missão será, como a minha, exclusivamente espiritual.
De resto, mesmo que conhecêsseis meus critérios pessoais, não teríeis nenhuma obrigação de segui-los. A minha opinião não é um dogma — os dogmas só são estabelecidos pelo Magistério da Igreja, no que diz respeito ao depósito da fé — e as vossas opiniões também não são dogmas. Seríamos incoerentes se não respeitássemos opiniões diferentes daquelas que cada um de nós tem: como também o seriam os meus filhos se não exercessem o direito de expressar as suas orientações políticas em assuntos de livre discussão.
Já vos disse o porquê: porque, se os católicos responsáveis não intervierem nesses assuntos temporais — com total acordo sobre seu denominador comum, e com suas diferentes formas de julgar o que é opinável —, dificilmente esse campo deixaria de ficar nas mãos de pessoas que não levam em conta os princípios do direito natural, nem o verdadeiro bem comum da sociedade, nem os direitos da Igreja: nas mãos de pessoas que, além disso, não estão acostumadas a respeitar opiniões contrárias às suas. Ou seja, sem este espírito cristão de consideração dos princípios intangíveis e da legítima liberdade de escolha no que é opinável, não pode haver paz, nem liberdade, nem justiça na sociedade.
Jamais falo sobre questões contingentes da política, e já expliquei que ajo assim porque a minha missão é exclusivamente espiritual. Mas há outra razão: é que os Diretores da Obra nunca podem impor um critério político ou profissional — temporal, numa palavra — aos seus irmãos.
Na Igreja, é somente a Hierarquia eclesiástica ordinária que tem o direito e o dever de dar orientação política aos católicos, de lhes fazer ver a necessidade — caso realmente julgue existir tal necessidade — de adotar uma determinada posição nos problemas da vida pública.
E, quando a Hierarquia intervém desta forma, isso não é clericalismo de forma alguma. Todo católico bem formado deve saber que é responsabilidade da missão pastoral dos bispos dar critérios nos assuntos públicos quando o bem da Igreja assim o exigir; e os católicos bem formados também sabem que esta intervenção cabe unicamente, por direito divino, aos bispos; porque somente eles, estando em comunhão com o Romano Pontífice, têm função pública de governo na Igreja: já que Spiritus Sanctus posuit episcopos regere Ecclesiam Dei73, o Espírito Santo pôs os bispos para reger a Igreja de Deus.
Vede, filhos da minha alma, a grande necessidade que existe de formar os católicos com um fim determinado: de conduzi-los à unidade nas coisas essenciais, deixando, ao mesmo tempo, que usem sua legítima liberdade, com caridade e compreensão para com todos, nas questões temporais. Liberdade: chega de dogmas nas coisas opináveis.
Não está de acordo com a dignidade e com a própria psicologia dos homens esse fixar arbitrariamente verdades absolutas onde necessariamente cada um deve contemplar as coisas do seu ponto de vista, segundo seus interesses particulares e com a sua experiência pessoal. De resto, um partido único — consequência necessária de se ter implantado uma única opção possível — não serve para conduzir por muito tempo a vida pública de um país, porque acaba se desgastando, acaba perdendo a simpatia e a confiança das pessoas, ainda que a gestão tenha sido positiva em seu conjunto e não tenha havido imoralidades. Eu, sinceramente, acho que as coisas são assim, mas posso estar errado: não seria a primeira vez.
Outra advertência, filhos, embora talvez seja supérflua, porque, se tiverdes meu espírito, dificilmente querereis agir assim na vida pública. A advertência é esta: não sejais católicos oficiais, católicos que fazem da religião um trampolim, não para saltar para Deus, mas para galgar as posições — as vantagens materiais: honras, riquezas, poder — que ambicionam. Uma pessoa séria dizia com bom humor, talvez exagerando, que eles põem os olhos no céu e as mãos naquilo que consigam alcançar.
Aqueles católicos que fazem do chamar-se católicos sua profissão — profissão na qual têm o direito de admitir alguns e rejeitar outros — querem negar o princípio da responsabilidade pessoal, sobre o qual se baseia toda a moral cristã: porque aquele que não pode fazer uso de sua legítima liberdade não tem direito a remuneração por suas boas ações, nem pode receber o castigo por suas más ações ou omissões.
Eles negam o princípio da responsabilidade pessoal, dizia-vos eu, e querem que todos os católicos de um país formem um bloco compacto, renunciem a todas as suas opiniões temporais livres, para apoiar massivamente um único partido, um único grupo político, do qual eles — os católicos oficiais — são os amos e que, portanto, também é oficialmente católico.
Mas como vão conseguir que os outros cidadãos católicos abdiquem habitualmente dos seus direitos para se submeterem a um monopólio que não tem razão de ser? Eles o conseguem, muitas vezes, com o que vamos denominar um engano, embora eu não queira julgar a boa-fé com que agem. O engano consiste em confundir os católicos, pedindo-lhes esta unidade inútil e absurda no que é opinável em nome da necessária e lógica unidade no que diz respeito à fé e à moral da Igreja.
Com campanhas políticas bem-organizadas, conseguem desconcertar a opinião pública, fazendo-a acreditar que só eles podem ser baluarte, defesa da Igreja naquelas circunstâncias concretas do seu país. Às vezes, chegam a criar — e a manter depois, enquanto possam — uma situação artificial de perigo, a fim de que os cidadãos católicos se convençam mais facilmente da necessidade de sacrificar suas livres opções temporais e apoiem o partido que assumiu oficialmente a defesa da Igreja.
Não vos surpreendais de que, às vezes, o engano seja tão hábil que nem as próprias autoridades eclesiásticas o percebam, vindo de alguma forma a apoiar aquele partido confessional e reforçando, assim, oficialmente o seu caráter e a sua pretensão de se impor às consciências dos fiéis.
Não quero dizer que todos os partidos oficialmente católicos devam basear-se neste engano: há aqueles que realmente cumprem uma função de serviço, de defesa dos interesses da Igreja, dando forma unitária e força aos cidadãos católicos. Contudo, parece-me quase impossível — a experiência é muito clara — que um partido oficialmente católico, ainda que tenha nascido servindo à Igreja, não acabe servindo-se da Igreja.
Porque, mais cedo ou mais tarde, a situação excepcional que exigiu uma unidade especial entre os católicos na vida pública, tende a se normalizar e, portanto, tende a desaparecer a necessidade do partido único e obrigatório dos católicos.
Então, costuma acontecer algo muito humano, mas muito desagradável: que os católicos oficiais que mandam naquele partido não estejam dispostos a perder sua situação de privilégio, ao que tentam mantê-la a todo custo. Para isso, não é difícil que cheguem a fazer uma chantagem moral: ou continuam no poder, com o apoio da Hierarquia, ou tudo desmorona, porque os inimigos da Igreja terão o caminho aberto.
Têm razão: com a sua política exclusivista, tirânica, conseguiram atrofiar e pôr fora de jogo todas as outras organizações e grupos constituídos por católicos, e só eles estão em condições de agir com certa força. Chega assim o momento em que a Igreja se sente comprometida, amarrada com uma corda dupla ao destino do partido católico oficial.
Não vos surpreenda que possa acontecer uma coisa desse gênero. Pensai, meus filhos, que o poder temporal costuma deformar, com o tempo, aquele que o possui e o exerce. Não é incomum, portanto, que um católico com pouca formação doutrinal e pouca vida interior sinta a tentação de utilizar qualquer meio para manter a posição que alcançou na vida pública: e que acabe fazendo o possível e o impossível para se manter no poder, chegando mesmo comprometer a própria consciência, deformando-a.
Compreendemos claramente que o que eu disse pode acontecer; mas não podemos tolerar que isso aconteça, porque assim toda a Igreja acaba prisioneira: prisioneira a Hierarquia, amarrada ao carro do partido oficial; e prisioneiros os fiéis, impedidos de exercer sua legítima liberdade.
Disto devemos deduzir, meus filhos, que temos o dever de amar a liberdade de todos e de servir a Igreja, evitando tudo o que possa significar servir-se da Igreja para fins políticos de uma parcela. Só podemos nos servir da Igreja para encontrar as fontes da graça e da salvação; isso significa renunciar aos próprios interesses, sacrificar-se com alegria para que Cristo reine na terra, ter pureza de intenção. Com esta mentalidade deverão ir à política aqueles meus filhos que tenham essa nobre inclinação: de servir a sua pátria, de defender as liberdades humanas e estender o reinado de Jesus Cristo.
Por isso, evitarão ser católicos oficiais e procurarão lutar lealmente com as mesmas armas que os outros, apresentando-se como aquilo que são: cidadãos comuns iguais aos demais, católicos responsáveis, que mantêm a unidade com os outros católicos no que é essencial, mas que não querem criar dogmas no acidental, em questões temporais opináveis.
Esta é a razão limpa e transparente pela qual entre estes meus filhos sempre haverá — é lógico e bom que haja — diferentes maneiras de entender quais são os meios mais aptos, em cada circunstância, para buscar o bem comum da sociedade em que vivem.
Todos eles puxarão o carro na mesma direção — Deus, bem comum de todos os homens —, mas com diferentes estados de ânimo, com opiniões muito diferentes — e até opostas — sobre as questões temporais opináveis. Assim não podem comprometer a Igreja, assim não podem comprometer a Obra.
Apesar de tudo, alguns — muitas das pessoas com quem falei — parecem não querer compreender estas ideias tão claras. Tenhamos paciência, deixemos o tempo correr e peçamos a Deus que lhes dê luzes, e eles chegarão a compreender.
Já vos falei longamente sobre este ponto da política, porque cabe a vós, meus filhos, afirmar o reinado de Jesus Cristo em todos os campos da atividade humana, em todas as tarefas temporais. Além disso, porque aqueles de vós que trabalharem livremente em assuntos públicos deverão levar muito em consideração os perigos da política.
Já aludi a estes riscos: falei-vos do perigo de que o exercício do poder possa chegar a deformar a consciência, do perigo de não respeitar a justa liberdade dos outros e do perigo de comprometer a Igreja ou a Obra. Mas há perigos ainda mais gerais: o da ambição, o das paixões — nacionalismo, partidarismo etc. —, o de perder a visão sobrenatural e esquecer a ação divina no mundo e nos corações.
As palavras da Sagrada Escritura caem aqui como uma luva: As coisas que Deus fez são boas a seu tempo. Ele pôs, além disso, no seu coração, a duração inteira, sem que ninguém possa compreender a obra divina de um extremo ao outro74; isto é, sem que o homem possa compreender a admirável sabedoria que brilha e brilhará nas obras do Criador, desde o princípio até o fim do mundo. Com discussões e rivalidades políticas, o homem esquece facilmente que é o Senhor quem faz, quem promove tudo o que é bom e quem nos libertou.
Para evitar esse veneno, esses perigos — que não devem afastar desta tarefa aqueles de vós que tenhais essa vocação específica, que é sempre um trabalho profissional —, o antídoto está nos meios ascéticos, à disposição de todos os filhos de Deus na sua Obra para se santificarem no meio do mundo, na rua: o espírito de pobreza, desprendimento verdadeiro dos bens temporais; e o espírito de humildade, desprendimento das glórias humanas, do poder: são os frutos saborosos da alma contemplativa na ação profissional.
Insisto especialmente no espírito de humildade: porque sabeis — repito-vos continuamente — que o amor-próprio e o orgulho são, para a alma, muito mais insidiosos e muito mais nocivos do que a concupiscência da carne e a concupiscência dos olhos75, que são perigos mais fáceis de descobrir e combater. Por isso peço aos meus filhos que estejam vigilantes e não se deixem seduzir por essa glória vã, por essa fumaça de soberba de que está carregada a atmosfera da vida pública. Veja o que São Paulo nos diz: nemo se seducat. Si quis videtur inter vos sapiens esse in hoc saeculo, stultus fiat ut sit sapiens76. Ninguém engane a si mesmo. Se algum de vós se considera sábio segundo o mundo, faça-se estulto aos olhos dos mundanos, para ser sábio aos olhos de Deus.
Entendei-me: vossa humildade não deve ser a mesma dos religiosos, que são chamados pelo Senhor a fugir do mundo, a viver o contemptus saeculi, o desprezo pelas realidades temporais, ainda que essas realidades terrenas, consideradas em si mesmas, não constituam ofensa a Deus. A vossa humildade, filhas e filhos da minha alma, deve ser a humildade dos cristãos, que devem amar o mundo, apreciar todas as coisas temporais que Deus deu ao homem para o servir; a vossa humildade deve ser a das almas chamadas a ser do mundo, mas sem ser mundanas, sem tolerar que as coisas temporais — instrumentos de trabalho, para o serviço de Deus — se prendam ao coração e impeçam o progresso espiritual, que tende à perfeição da caridade.
O poder, o mando, a autoridade — junto com as honras que necessariamente devem acompanhar e sustentar essas funções sociais — não são coisas ruins em si mesmas, muito menos para os leigos que devem se santificar no meio delas. São coisas boas, positivas, ordenadas por sua própria natureza ao bem do homem e à glória de Deus. Elas não são um mal necessário, nem um mal menor: nem, em igualdade de condições, pode-se dizer que é mais perfeito abster-se delas do que utilizá-las.
O ensinamento de São Paulo é claríssimo: toda pessoa está sujeita a poderes superiores: porque não há poder que não venha de Deus, e Deus foi quem estabeleceu os que existem no mundo. Portanto, quem desobedece aos poderes, à ordem ou à vontade de Deus desobedece... Porque aquele que governa é um ministro de Deus colocado para o teu bem... Por esta mesma razão, pagais a eles os tributos, porque eles são ministros de Deus, a quem nisto mesmo servem. Pagai, pois, a todos o que lhes é devido: a quem se deve o tributo, tributo; a quem o temor, temor; a quem a honra, honra77. E, antes, o próprio Jesus Cristo o havia ensinado, dizendo a Pilatos: não terias poder algum sobre mim se não te fosse dado do alto78.
Mas o poder, sendo necessário e bom como é, não deixa de ser para o homem caído — pronus ad peccatum, inclinado ao pecado — mais uma ocasião de apego, vanglória, presunção, esquecimento de Deus, como tantas outras coisas boas que podem tornar-se más pela malícia dos homens.
Por isso, os cristãos comuns que devem santificar-se nestas coisas públicas — também vós, minhas filhas e filhos, se escolhestes livremente esta atividade profissional, que é parte da vossa vocação divina — devem estar vigilantes, retificando constantemente a intenção.
Aqui, é muito oportuno recordar aquela manifestação tão heroica da retidão de intenção, da verdadeira humildade no serviço de Deus, que sempre se deve viver em Casa: refiro-me à disposição de todos os meus filhos de abandonar o trabalho pessoal mais florescente — pode ser também um trabalho político — para se dedicar a outras tarefas profissionais externamente menos brilhantes, caso o bem do apostolado o exija e os que têm autoridade na Obra assim o decidirem.
Esta decisão habitual é uma amostra muito evidente de desprendimento, pois para nós dá no mesmo trabalhar aqui ou ali, desde que saibamos que nosso trabalho é um serviço a Deus e a todas as almas: com este espírito, os meus filhos aprendem a agradar a Deus em tudo o que fazem e a evitar o contágio do desejo desordenado de poder e das ambições pessoais.
Porque sabem ceder, respeitar a opinião legítima dos outros, agir em tudo com o estilo dos filhos de Deus, tanto na Obra quanto na vida pública em concreto, eles não esquecerão de que a sua missão é servir sem esperar gratidão nem honra dos homens, tendo apenas o desejo de agradar a Jesus, cui servire regnare est. Desta forma, serão sem dúvida mais eficazes e, sobretudo, santificar-se-ão em todas as suas atividades pessoais, que — com a graça de Deus — terão sabido converter em instrumento de santificação e apostolado, com um extensíssimo raio de ação.
Quando vos falo do apostolado do exemplo, da ação pessoal livre e responsável, de nunca ser católicos oficiais, talvez alguém possa pensar que, para tornar mais eficaz este acesso apostólico a todos os ambientes e para dar mais facilmente este exemplo cristão, seria conveniente guardar sigilo quanto ao fato de pertencer à Obra.
Vede: não é assim. Odeio o segredo, que muitas vezes só serve para fazer o mal ou para diluir a responsabilidade. Não admito outro segredo que não o da confissão: e digo-o sempre a todos aqueles que alguma vez se aproximam de mim com a pretensão de me dizer algo em segredo.
Certamente agora, porque estamos no início deste trabalho divino, da nossa Obra de Deus, é absolutamente necessário não divulgar imprudentemente o nosso caminho, porque poucos estão em condições de entender esta novidade. Mas esta nossa atitude temporária é a mais natural: é o segredo da gestação.
Todos os seres que têm vida precisam de certo tempo de proteção — mais ou menos longo —, antes de virem à luz; precisam de algumas condições particulares que possibilitem seu primeiro desenvolvimento, seu amadurecimento. A natureza faz isso com as plantas e com os animais e com os homens; é, portanto, perfeitamente natural que tenhamos o mesmo cuidado com a Obra, que é um organismo vivo, que está iniciando sua atividade. Por outro lado, é assim que todas as instituições apostólicas começaram ordinariamente: sem espetáculo, sem barulho. Infelizmente ou felizmente, é previsível que de fazer barulho sobre a Obra de Deus outros já se encarregarão.
Devemos ter uma santa impaciência por comunicar o fogo divino que o Senhor fez arder em nossos corações a todas as almas que estão ao nosso redor, e até mesmo às mais distantes: mas, enquanto não chegue a aprovação da Santa Igreja, convém agir com prudência — de acordo com o Revmo. Ordinário do lugar, como sempre fizemos —, dando a conhecer afirmativamente às pessoas a realidade da Obra. Fique, porém, muito claro que esta forma de proceder não é, de forma alguma, guardar segredos: trabalhamos à vista de todo o mundo, e, de fato, só os cegos e os surdos podem desconhecer a nossa Obra.
Alguns, pelo que vejo, levados por sua incompreensão — vede que não sou duro em julgar —, gostariam que meus filhos, por terem essa maravilhosa dedicação ao serviço de Deus, levassem nas costas um cartaz que dissesse mais ou menos: saibam que eu sou um bom rapaz. E eles não percebem que nós — que não somos, nem nunca seremos religiosos, juridicamente, canonicamente — trabalhamos com sentido sobrenatural, da mesma forma como uma associação de fiéis.
E ninguém pensa em fazer, por exemplo, com que um médico que pertença a uma ordem terceira coloque em seus cartões de visita: “Fulano de Tal, terciário franciscano, doutor em Medicina.” Portanto, a nossa forma de agir não pode ser classificada como segredo: porque não se trata de tentar dissimular o que somos. Pelo contrário, trata-se simplesmente de naturalidade: de não querer simular o que não somos, porque somos cristãos comuns, iguais aos demais cidadãos.
Para serdes eficazes, portanto, deveis trabalhar com naturalidade, sem ostentação, sem tentar chamar a atenção, passando despercebidos, como passa despercebido um bom pai que educa seus filhos de maneira cristã, um bom amigo que dá um conselho cheio de sentido cristão ao seu amigo, um industrial ou empresário que cuida de que seus trabalhadores estejam bem atendidos espiritual e materialmente.
Deveis trabalhar — portanto — silenciosamente, mas sem mistérios nem segredos, que nós nunca utilizamos e nunca utilizaremos: porque os segredos não são necessários para servir a Deus e, além do mais, são repugnantes às pessoas que têm limpeza na consciência e na conduta. Silenciosamente: com uma humildade pessoal tão profunda que necessariamente vos leve a viver a humildade coletiva, a não querer receber cada um a estima e o apreço que merecem a Obra de Deus e a vida santa dos seus irmãos.
Essa humildade coletiva — que é heroica e que muitos não entenderão — leva os que fazem parte da Obra a passarem ocultos entre os seus iguais no mundo, sem receber aplausos pela boa semente que plantam, porque os outros dificilmente a perceberão, nem conseguirão explicar totalmente esse bonus odor Christi79 que inevitavelmente a vida dos meus filhos exala.
Devemos ter muito metidas em nossa vida de almas entregues ao serviço do Senhor aquelas palavras suas: guardai-vos de fazer vossas boas obras na presença dos homens, para que vos vejam; caso contrário, não recebereis a recompensa do vosso Pai que está nos céus80.
A virtude teologal da esperança dá-nos um apreço tão grande pelo prêmio que nosso Deus Pai nos prometeu que não queremos correr o risco de perdê-lo por falta de humildade coletiva; não queremos que se apliquem a nós aquelas outras palavras de Jesus, por termos buscado o aplauso dos homens: amem, dico vobis, quia receperunt mercedem suam81; eles já receberam sua recompensa. Triste negócio!
Por isso, não queremos ser elogiados nem apregoados: queremos trabalhar caladamente, com humildade, com alegria interior — servite Domino in laetitia82 —, com um entusiasmo apostólico que não se desvirtua precisamente porque não extravasa em ostentação, em manifestações pomposas. Queremos que haja em todas as profissões, em todas as tarefas humanas, grupos selecionados de homens e mulheres que, sem bandeiras desfraldadas nem etiquetas chamativas, vivam santamente e influenciem seus colegas de trabalho e a sociedade, para o bem das almas: esse é o empenho exclusivo da Obra.
Eu sempre vos digo que há aqueles que trabalham como três e fazem o barulho de três mil; queremos trabalhar como três mil, fazendo o barulho de três. Não estou falando nada pejorativo para ninguém; respeito as opiniões contrárias a essa nossa simplicidade no modo de fazer o apostolado. Mas estou convencido de que a unidade espiritual dos cristãos nem sempre necessita de manifestações externas de massas e ações coletivas ruidosas. A unidade não se alcança com congressos e gritarias, mas com a caridade e a verdade.
Entendeis, portanto, que a reserva discreta — nunca segredo — em que vos insisto nada mais é do que o antídoto contra a fanfarronice; é a defesa de uma humildade que Deus quer que seja também coletiva — de toda a Obra —, não só individual; é, ao mesmo tempo, um instrumento de maior eficácia no apostolado do bom exemplo, que cada um desenvolve pessoalmente em seu próprio ambiente familiar, profissional e social.
Porque não podemos esquecer, filhas e filhos da minha alma, que toda a nossa vida — por chamada divina — é apostolado. Nasce daí — o estais experimentando, e todos os vossos irmãos que vierem depois o experimentarão — o desejo constante de se relacionar com todos os homens, de superar qualquer barreira na caridade de Cristo.
Daí nasce em nós a preocupação cristã de fazer desaparecer qualquer forma de intolerância, coação e violência no relacionamento entre os homens. Também na ação apostólica — melhor: principalmente na ação apostólica —, queremos que não haja o menor sinal de coação. Deus quer ser servido na liberdade, e portanto não seria reto um apostolado que não respeitasse a liberdade das consciências.
Compreensão, portanto, embora às vezes haja quem não queira compreender: o amor por todas as almas deve levar-vos a amar todos os homens, a desculpar, a perdoar. Deve ser um amor que cubra todas as deficiências das misérias humanas; deve ser uma caridade maravilhosa: veritatem facientes in caritate83, seguindo a verdade do Evangelho com caridade.
Tende em mente que a caridade, mais do que dar, está em compreender. Não escondo que estou aprendendo, na minha própria carne, o que custa não ser compreendido. Sempre me esforcei por me fazer entender, mas há quem esteja empenhado em não me entender. Também por isso quero compreender a todos; e sempre deveis esforçar-vos por compreender os outros.
No entanto, não é um impulso circunstancial o que nos leva a ter esse coração católico amplo, universal. Este modo de agir pertence à própria essência da Obra, porque o Senhor quer que estejamos em todos os caminhos da terra, lançando as sementes da compreensão, da desculpa, do perdão, da caridade, da paz. Nunca nos sentiremos inimigos de ninguém. A Obra nunca poderá fazer discriminações, nunca quererá excluir ninguém do seu apostolado: senão, trairia o seu próprio fim, a razão pela qual Deus a quis na terra.
Não consigo ver como alguém possa viver segundo o coração de Jesus Cristo e não se sentir enviado, como Ele, peccatores salvos facere84, para salvar todos os pecadores. A atitude do cristão, portanto, não pode ser diferente daquela indicada por São Paulo: recomendo, portanto, acima de tudo, que se façam súplicas, orações, petições e ações de graças por todos os homens... Porque isso é bom e agradável aos olhos de Deus, nosso Salvador, que quer que todos os homens se salvem e cheguem ao conhecimento da verdade85.
O próprio São Paulo oferece-nos o seu exemplo pessoal para praticar esta doutrina: fiz-me fraco para os fracos, para conquistar os fracos; fiz-me tudo para todos86, para salvar a todos. Este é, minhas filhas e filhos, o espírito que lhes ensinei a praticar. Um espírito que é uma manifestação bem real de diversidade prática, de espírito aberto, disponibilidade sem limites.
Esta doutrina me foi dada por Deus, para que eu vo-la dê: e vós deveis vivê-la sempre com o vosso trabalho em tantas tarefas humanas, que se desenvolverão ao longo do tempo em todos os recantos da terra, para contribuir a promover a unidade verdadeira, o relacionamento sincero entre todos os homens.
Às vezes, o panorama pode parecer-vos desanimador: porque percebereis a insignificância humana do vosso esforço, diante de todo um mundo que não conhece a compreensão. Tendes razão: já se disse que o mundo sempre acaba dividido em duas metades, e uma se dedica a falar mal da outra. Mas, precisamente porque sobra desunião e incompreensão, Deus nos quer em todos os caminhos dos homens, para que vivamos pessoalmente a compreensão de Cristo e a ensinemos a ser vivida.
Não pretendemos mudar tudo em poucos dias. Digo-vos mais, algo que entristece: talvez nós, os cristãos, nunca venhamos a estabelecer plenamente na terra este clima de unidade. Mas isso não significa que não tenhamos esta meta diante dos olhos: se formos fiéis — dóceis à graça de Deus —, chegaremos até onde queira Deus; claro, muito além do que jamais poderíamos sonhar.
Se me perguntardes sobre os meios para obter esse fim de caridade, responderei que os tendes em nossos modos apostólicos peculiares, que são manifestações naturais do espírito sobrenatural da Obra. Primeiro, como sabem, o trabalho de amizade e confidência entre os jovens de todas as classes sociais, que são a esperança da realidade de amanhã e que agora está frutificando.
Depois, a prática constante das virtudes da convivência, oferecendo a Deus com alegria, sem que se note, os inevitáveis atritos entre as diferentes personalidades, mentalidades e gostos: cum omni humilitate et mansuetudine, cum patientia supportantes invicem in caritate87; com toda a humildade e mansidão, com paciência, suportando-vos uns aos outros com caridade.
Não exagereis essas dificuldades. Uma alma contemplativa sabe ver Jesus Cristo nos que a rodeiam, e não lhe custa suportar tudo o que aborrece na convivência com seus irmãos, os homens. Além disso, suportar parece-lhe pouco: o que quer é construir, imitar Jesus Cristo com a sua caridade sem limites, com a sua capacidade de ceder e conceder em tudo o que é pessoal, em tudo o que não implique em ofensa a Deus.
E assim nós, mais fortes na fé — dir-vos-ei com São Paulo —, devemos suportar as fraquezas dos menos firmes e não nos deixar levar por uma vã complacência para com nós mesmos. Ao contrário, cada um de vós procure agradar o próximo naquilo que é bom e pode edificá-lo88.
Também vos ensinei, meus filhos e filhas, uma regra prática, essencial para a convivência, para edificar os outros na caridade: não discutir, não pretender convencer os outros com a dialética, pois muitos não têm a disposição de ceder sem se sentirem humilhados ao reconhecer a razão de quem fala como adversário. Tratai com caridade o que ainda é fraco ou pouco instruído na fé, sem entrar em disputas de opinião89. Expõe-se a verdade serenamente, de forma positiva, sem polêmica, sem humilhar, deixando sempre ao outro uma saída honrosa, para que reconheça sem dificuldade que estava equivocado, que lhe faltava formação ou informação. Às vezes, a caridade mais fina consistirá em deixar que o outro fique com a convicção de que chegou, por conta própria, a descobrir uma nova verdade. Não discutais: em vez disso, fazei estudar os problemas com calma, fornecendo doutrina escrita.
Com esta disposição entregue, não duvideis de que o Senhor concederá a nós, cristãos, o que São Paulo pedia: queira o Deus da paciência e da consolação conceder-vos a graça de estardes sempre unidos em sentimentos e afetos segundo o Espírito de Jesus Cristo, para que, tendo um só coração e uma só boca, unanimemente glorifiqueis a Deus, o Pai de Nosso Senhor Jesus Cristo90.
Esta dedicação, esta compreensão, esta caridade, esquecendo dos nossos direitos, faz-nos ceder —conceder — em tudo o que seja nosso, em todas as nossas coisas pessoais, até onde chegou Jesus Cristo. O Senhor nos disse para aprendermos com Ele: discite a me quia mitis sum et humilis corde91; para viver essa mansidão, essa humildade, essa santa transigência com tudo o que é pessoal, basta-nos contemplar Jesus, que semetipsum exinanivit formam servi accipiens, in similitudem hominum factus et habitu inventus ut homo92; que se aniquilou, assumindo a forma de servo, tornando-se semelhante aos demais homens e reduzido à condição de homem.
A aniquilação de Nosso Senhor não teve limites. Sua santa transigência chegou até a morte mais ignominiosa: humiliavit semetipsum factus obediens usque ad mortem, mortem autem crucis93; aniquilou-se a si mesmo, sendo obediente até à morte, e morte de cruz. E o fez por amor aos homens, a quem chama de amigos, mesmo que não queiram sê-lo. Vos autem dixi amicos94, diz aos discípulos que vão deixá-lo sozinho na hora da prova. Amice, ad quid veniste? 95, a que vieste, amigo?, diz ao próprio Judas, que vem entregá-lo.
E por amor a todos — aos seus amigos que querem ser fiéis, apesar de estarem cheios de misérias; e aos que não querem ser seus amigos —, Jesus Cristo deixa-se maltratar, insultar, crucificar. Maiorem hac dilectionem nemo habet, ut animam suam ponat quis pro amicis suis96; ninguém tem maior amor do que aquele que dá a vida pelos seus amigos.
Mas Jesus Cristo não nos deu apenas o exemplo de santa transigência; Ele também nos deu o exemplo claríssimo da santa intransigência nas coisas de Deus. Porque Jesus não transige com o erro — aquelas terríveis repreensões aos fariseus! —, nem tolera que, na sua presença, o Criador seja ofendido impunemente. Contemplai a santa indignação de Cristo, diante do abuso dos mercadores no Templo: tendo entrado no templo, começou a expulsar os que ali vendiam, dizendo-lhes: está escrito: a minha casa é casa de oração; mas vós fizestes dela um covil de ladrões97.
Nós também não podemos tolerar que se ofenda a Deus onde estivermos, caso possamos evitá-lo; se necessário, usaremos também de uma santa coação, acompanhada de toda suavidade possível na forma e respeitando sempre a legítima liberdade das consciências. Noutras palavras, agiremos de forma que fique claro que não estamos defendendo interesses pessoais, mas que o fazemos apenas por amor a Deus — zelus domus tuae comedit me98, o zelo por tua Casa consome minhas entranhas — e por amor aos homens, os quais desejamos tirar do erro para evitar que condenem tolamente as suas almas.
Por isso, às vezes, minhas filhas e filhos, não teremos outra escolha a não ser passar por momentos difíceis e fazer com que os outros passem por eles, a fim de os ajudar a ser melhores. Não seríamos apóstolos se não estivéssemos dispostos a que interpretem mal nossas ações e reajam de maneira desagradável.
Temos de nos convencer de que os santos — nós não pensamos que somos santos, mas queremos sê-lo — são necessariamente pessoas incômodas, homens ou mulheres — minha Santa Catarina de Sena! — que, com o seu exemplo e a sua palavra, são motivo contínuo de inquietação para as consciências comprometidas com o pecado.
Para quem não quer ter uma vida limpa, nossa delicadeza em guardar o coração deve necessariamente ser como uma reprovação, como um estímulo que não permite que as almas se abandonem ou adormeçam. É bom que seja assim; o filho meu que não queira provocar essas reações nas almas dos que o cercam, aquele que sempre deseja fazer-se de simpático, não poderá evitar que ele mesmo ofenda a Deus, pois se tornará cúmplice das desordens alheias. Vivei de tal modo que possais dizer: inflamatum est cor meum, et renes mei commutati sunt: zelus domus tuae comedit me99; meu coração se inflama e minhas entranhas se comovem: porque o zelo da tua casa me devora.
O santo é incômodo, eu vos dizia. Mas isso não significa que tenha de ser insuportável. Seu zelo nunca deve ser um zelo amargo; sua correção nunca deve ferir; seu exemplo nunca deve ser uma bofetada moral, dada na cara de seus amigos. A caridade de Cristo — essa santa transigência com as pessoas de que vos falava — deve suavizar tudo, de modo que nunca se possa dizer de um dos meus filhos o que se pode dizer — às vezes, infelizmente, com razão — de certas pessoas boas: que para aturar santo são necessários dois santos.
Nossa atitude deve ser a oposta: não queremos que ninguém se afaste de nós por não termos sabido compreendê-lo ou tratá-lo com carinho. Nunca devemos ser pessoas que vão comprando brigas. Sigamos o conselho de São Paulo: vivei em paz com todos os homens se for possível, enquanto depender de vós100.
Esforçamo-nos por viver em paz, mesmo quando os outros não querem: abençoai os que vos perseguem: abençoai-os e não os amaldiçoeis. A ninguém devolvais o mal com o mal, procurando fazer o bem, não só diante de Deus, mas também diante de todos os homens101. Nunca tratamos ninguém como inimigo, porque não podemos ser inimigos de ninguém.
Mais ainda, iremos positivamente fazer amigos, ganhar amigos para os tornar amigos de Jesus Cristo. O Senhor quer servir-se de nós — da nossa relação com os homens, desta nossa capacidade, que Ele mesmo nos deu, de amar e ser amados — para que Ele continue a fazer amigos na terra; assim como se serviu de João Batista para encontrar o outro João, aquele que seria seu amigo predileto, aquele que vemos encostado no peito de Jesus naquela noite encantadora da Última Ceia: erat ergo recumbens unus ex discipulis eius in sinu Iesu, quem diligebat Iesus102.
Façamos amigos entre os nossos colegas de trabalho, entre aqueles que vivem em nosso meio, mesmo que estejam longe de Deus; posso até dizer que destes devemos nos aproximar mais, porque eles precisam mais de nós. Precisam de nós, em primeiro lugar, os cristãos preguiçosos, aqueles que não vivem de acordo com a fé que professam; abordemo-los com toda a nossa caridade e com toda a nossa compreensão, oferecendo-lhes uma amizade sincera, autêntica, humana e sobrenatural.
Não vos retraia o perigo de contágio; com a nossa vida contemplativa, com a fidelidade ao nosso espírito, às nossas Normas e aos nossos costumes, somos imunes aos seus erros e aos seus exemplos, se não forem cristãos. Como os amamos com o coração de Cristo, Jesus está entre nós e eles, e acabaremos afogando o mal em abundância de bem.
No entanto, deveis ter muita paciência; deveis fazer o firme propósito de não desanimar, porque o trabalho não é fácil. De fato, a conversão de um mau cristão — católico ou não — é um milagre maior do que a de um pagão: já que os primeiros tendem a entender mal, de forma distorcida, tudo o que lhes dizemos sobre Jesus e sua doutrina, porque diante de seus olhos eles não veem Jesus Cristo, mas uma caricatura de Jesus Cristo.
Diante dessa dificuldade, devemos ser constantes na oração: rogai também continuamente pelos outros homens, pois neles cabe a esperança da conversão, para que cheguem a Deus. Fazei com que, pelo menos por vossas obras, sejam instruídos por vós... Oponde, às suas blasfêmias, as vossas orações; aos seus extravios, a vossa firmeza na fé; à sua crueldade, a vossa doçura. Mostremo-nos seus irmãos, por nossa amabilidade: esforcemo-nos apenas por imitar o Senhor103.
Vede, filhas e filhos da minha alma, qual é o motivo último da nossa abertura de espírito, do nosso querer compreender a todos: é o afã apostólico. Se fugíssemos daqueles que não conhecem ou não praticam a fé de Cristo, não lhes daríamos a oportunidade de contemplar o nosso exemplo, não poderíamos oferecer-lhes a imagem verdadeira de Jesus Cristo refletida em nossas vidas, apesar de tanta miséria pessoal nossa.
Temos de ir com todos, se necessário, até as próprias portas do inferno: mais adiante, não, porque lá não se pode amar Jesus Cristo. Nós os atrairemos com a nossa amizade leal, acolheremos até os mais distantes em nossas próprias casas. Por isso, fará parte do nosso amadíssimo apostolado ad fidem — que, oportunamente, receberá, não tenho dúvida, a aprovação oficial — permitir que nossos amigos não católicos assistam a atos de culto em nossos oratórios; sem lhes dar demasiadas facilidades, fazendo-os desejar, de modo a enfatizar a liberdade pessoal, que é a principal característica dos nossos apostolados.
Para facilitar este trabalho, está mais de acordo com o nosso espírito que não demos aos nossos Centros ou às nossas casas nomes que possam ter um significado agressivo ou militar, de vitória ou glória: Deo omnis glória!, a Deus toda a glória! Embora respeite sem inconvenientes que os outros pensem e ajam de maneira diferente, tende sempre em mente que os filhos de Deus em sua Obra não precisam de violência; sentimo-nos protegidos pela Divina Providência e podemos dizer, depois de experimentá-lo tantas vezes: in umbra manus suae protexit me104, o Senhor cobriu-me com a sombra de sua mão.
Até agora, minhas filhas e filhos queridíssimos, fiz-vos considerar algumas facetas do apostolado individual que cada um de vós deve exercer no seu próprio ambiente, no desenvolvimento do seu trabalho ordinário, da sua profissão ou ofício. Existem, porém, outros tipos de apostolado que, com o tempo, os meus filhos exercerão em todo o mundo, associando-se como cidadãos comuns a outros cidadãos, sempre dentro das leis do país em que trabalham.
Associar-se-ão com outros cidadãos — nem sempre têm de ser católicos —, para desenvolverem juntos um trabalho profissional com finalidade eminentemente apostólica, ou seja, que sirva diretamente para dar doutrina — este é sempre o nosso apostolado —, mesmo que não tenha um caráter exclusivamente espiritual.
Normalmente serão, por exemplo, trabalhos culturais, de beneficência, de imprensa, de cinema etc. Não devem ser tarefas oficialmente católicas, embora possa haver alguma exceção, se isso for oportuno. Mas, em geral, deverão ter as mesmas características do apostolado pessoal dos meus filhos, do qual acabei de falar: porque será um trabalho profissional, secular e laical, realizado por cidadãos entre seus iguais. A questão não está em que se chamem católicos, mas em que o sejam de fato, tanto na ação individual como no trabalho conjunto.
Por fim, deve haver também outro tipo de apostolados por que a Obra será oficialmente responsável; serão sempre atividades profissionais de caráter pleno e exclusivamente apostólico, realizadas pelos meus filhos. E, como serão realizadas corporativamente por aqueles que pertencem ao Opus Dei, nós as chamaremos obras corporativas.
Poderão ser de tipos muito diversos, segundo as circunstâncias e as necessidades das almas de cada lugar e em cada época: centros de formação para todas as categorias sociais; casas para retiros espirituais e cursos de instrução religiosa; residências para estudantes universitários; centros profissionais e assistenciais para operários, agricultores etc.
As minhas filhas e filhos que se encarregarem destas tarefas apostólicas deverão dedicar-se a elas profissionalmente, porque para todos os que fazem parte da Obra, sem exceção, o trabalho profissional é o único meio para a santificação própria e dos demais. O seu trabalho nas obras corporativas será o seu trabalho ordinário de natureza profissional, ainda que tenha uma finalidade direta e totalmente apostólica; e, em todo o caso, será uma tarefa igual à de muitos outros cidadãos: professores, médicos, administradores, diretores de residências estudantis etc.
Se meus filhos alguma vez tiverem de deixar sua ocupação profissional habitual para se dedicarem a tarefas de direção, formação ou assistência em algum trabalho corporativo, mesmo assim não terão deixado de viver a vida comum das pessoas da rua, e o seu novo trabalho será sempre trabalho profissional; pois é comum, em todos os lugares, que muitas pessoas mudem de atividade, com maior ou menor frequência, por motivos familiares, econômicos, sociais etc. E há profissões — a política, por exemplo — às quais se dedicam, normalmente, pessoas que já se haviam ocupado, e continuam a ocupar-se, de outras tarefas.
As casas e os Centros que são sede material — o domicílio — desses trabalhos corporativos não serão nossas, ordinariamente. Por muitas razões, isso não é conveniente; além disso, não poderia ser assim, porque somos pobres: a Obra é pobre agora, no início, e sempre o será, porque o Senhor nunca deixará de nos pedir mais trabalhos apostólicos, mais iniciativas, mais gastos de dinheiro e de pessoas ao seu serviço. Trabalharemos em casas alugadas, ou em edifícios do Estado, ou em lugares de propriedade de uma sociedade formada por alguns de meus filhos e outros cidadãos que queiram nos ajudar.
Porque somos pobres, as minhas filhas e os meus filhos vão realizar esses trabalhos com grande sentido de responsabilidade, perante Deus. Eles se orientarão, em qualquer circunstância que surja e que não esteja expressamente prevista nas normas específicas que vou dando, pela fórmula, pelo critério seguro que me ouvistes dizer tantas vezes: farão o que faria um pai ou uma mãe de família numerosa e pobre.
Estes trabalhos corporativos, dizia-vos, excluem qualquer outro fim que não seja puramente espiritual e apostólico: por isso, é possível e necessário que a Obra — cujo fim é exclusivamente sobrenatural — assuma a responsabilidade pela segurança da sua doutrina católica. Não difundirão uma doutrina ou opiniões corporativas sobre assuntos temporais, porque tal doutrina corporativa — já vos disse mil vezes — não existe, não pode existir. Corporativamente, não temos opiniões próprias — cada um pode tê-las —, temos apenas crenças: a doutrina da Igreja que aceitamos sem reservas, e que é a única coisa que nos une.
De fato, só nos une a doutrina da Santa Igreja de Deus, a chamada divina e o desejo de servi-la como seus filhos fiéis e agradecidos. Esta é a nossa ambição sobrenatural, que é precisamente o que mais se opõe a qualquer ambição humana, a qualquer ambição de vantagem pessoal. Não trabalhamos para nos engrandecer, mas para desaparecer e, com o nosso sacrifício, colocar Cristo no cume de todas as atividades humanas.
Nosso lema é o do Batista: illum oportet crescere, me autem minui105; convém que Cristo cresça e que eu me torne pequeno. Por isso, nossa maior ambição — a verdadeira glória da Obra — é viver sem a glória humana, para que a glória seja somente de Deus, soli Deo honor et gloria106.
Já vínhamos contemplando o exemplo de Jesus Cristo. Vejamo-lo novamente, voltando a um texto maravilhoso de São Paulo, que já citei em outra ocasião: não devemos deixar-nos levar pela humana complacência de nós mesmos. Porque Cristo não buscou sua própria satisfação, mas, como está escrito, ele dizia a seu Pai: os opróbrios daqueles que te ultrajaram caíram sobre mim107.
Não fazemos apostolado para receber aplausos, mas para dar a cara pela Igreja, quando ser católico for difícil; e para passarmos ocultos, quando se dizer católico estiver na moda. De fato, em muitos ambientes, ser católico de verdade, mesmo sem se chamar assim, é motivo suficiente para receber todo tipo de injúrias e ataques. É por isso que, embora eu já vos tenha dito alguma vez que nos repugna viver do fato de ser católicos, viveremos, se for preciso, apesar de sermos católicos. Sem esquecer, acrescento sempre, que nos repugnaria mais ainda viver de nos chamarmos católicos.
Ambição de servir: esta ambição tem algumas manifestações concretas muito claras, que também poderíamos chamar de nossas paixões dominantes, as nossas loucuras. A primeira é querer ser o último em tudo e o primeiro no amor. Dizemos ao Senhor, na nossa meditação pessoal: Jesus, que eu te ame mais do que todos! Eu já sei que sou o último dos teus servos; já sei que estou cheio de misérias: tiveste de me perdoar por tantas ofensas, tantas negligências! Mas tu disseste que ama menos aquele a quem menos se perdoa108.
Ânsia de almas: temos o desejo veemente de ser corredentores com Cristo, de salvar todas as almas com Ele, porque somos, queremos ser ipse Christus, e Ele dedit redemptionem semetipsum pro omnibus109, entregou-se como resgate por todos. Unidos a Cristo e à sua Mãe Santíssima, que é também nossa Mãe, Refugium peccatorum; fielmente unidos ao Vigário de Cristo na terra — ao doce Cristo na terra —, ao Papa, temos a ambição de levar a todos os homens os meios de salvação que a Igreja possui, tornando realidade aquela jaculatória, que venho repetindo desde o dia dos Santos Anjos da Guarda de 1928: omnes cum Petro ad Iesum per Mariam!
Mas não podemos aspirar a ser corredentores com Cristo se não estivermos dispostos a reparar pelos pecados, como Ele fez. Vede como São Paulo aplica a Jesus Cristo as palavras do Salmo XXXIX: Não quiseste sacrifício nem oferenda, mas preparaste-me um corpo mortal; não te agradaram os holocaustos pelo pecado, então eu disse: eis-me aqui, que venho; como está escrito a meu respeito no princípio do livro, para cumprir, ó Deus, a tua vontade110.
Queremos oferecer a nossa vida, a nossa dedicação sem reservas e sem regateios, como expiação pelos nossos pecados; pelos pecados de todos os homens, nossos irmãos; pelos pecados cometidos em todos os tempos e pelos que se cometerão até o fim dos séculos: antes de tudo, pelos católicos, pelos eleitos de Deus que não sabem corresponder, que atraiçoam o amor de predileção que o Senhor teve para com eles.
Amar como quem mais ama: ganhar todas as almas para Cristo; reparar abundantemente pelas ofensas feitas ao Coração Sacratíssimo de Jesus: eis aqui as nossas ambições. Com tal loucura divina, com este zelo que nos come as entranhas, zelus domus tuae comedit me111, que ambição humana poderá agarrar-se a nós no caminho da nossa vida? Nenhum de nós, se mantivermos este espírito da Obra, pode ter afã de brilhar, de subir na escala social, de obter cargos, honras, reconhecimentos, se não for apesar da sua vontade e para servir a Deus.
Porque, se estivéssemos motivados por esta ambição humana, para satisfazer o nosso amor-próprio —não faltará quem diga falsamente que o fizemos —, então teríamos de renunciar à aspiração de servir a Deus: nemo potest duobus dominis servire112, porque ninguém pode servir a dois senhores: a Jesus Cristo e à nossa vaidade.
Eu me lembro de que, logo após ordenado, deram-me este bom conselho: se quiser fazer carreira, evite cuidadosamente tudo o que seja trabalhar a sério e, acima de tudo, evite escrever coisas claras. Na época, talvez eu não tenha entendido muito bem; agora vejo que, do ponto de vista humano, tinham razão. Mas dou graças a Deus, meu Senhor, porque me fez compreender — já naquela altura — que eu não devia fazer caso do que me diziam: nunca me interessei por fazer carreira, apesar das minhas falhas e das minhas misérias pessoais.
É tal o meu horror a tudo o que suponha ambição humana, ainda que irrepreensível, que, se Deus na sua misericórdia quis servir-se de mim, que sou um pecador, para a fundação da Obra, foi apesar de mim. Sabeis da aversão que sempre tive a esse empenho de alguns — quando não é baseado em razões muito sobrenaturais, que a Igreja julga — em criar novas fundações. Parecia-me — e ainda me parece — que havia demasiadas fundações e fundadores: via o perigo de uma espécie de psicose de fundação, que levava a criar coisas desnecessárias por motivos que considerava ridículos. Pensava, talvez com falta de caridade, que em algumas ocasiões o motivo era o menos importante: o essencial era criar algo novo e chamar-se fundador.
Assim, multiplicavam-se as obras, com nomes e propósitos que aparentemente nasciam — mesmo que atomizando as tarefas apostólicas e mudando frequentemente suas finalidades — desse desejo de ser chefe, ainda que fosse de um pequeno grupo: e me divertia muito — devo confessá-lo, e peço perdão a Deus se O ofendi com isso — dizendo a mim mesmo, ao considerar as finalidades concretas e diminutas que davam origem a vestes chocantes e famílias religiosas iguais a outras muitas que já existiam, pois diferiam apenas na cor do hábito, ou no cordão, ou na correia presa à cintura: Fundação do Padre Fulano, das filhas de Santa Emerenciana de Tal, para as netas da viúva vesga que tenham o cabelo loiro. Não vos surpreenda que eu vos diga que conheço instituições criadas para corrigir jovens pervertidas — é um exemplo entre muitos — e que, depois de poucos anos, abandonam seu trabalho fundacional, não porque não haja mais mulheres desviadas do que antes, mas por questões de conforto, para se dedicar a ter escolas pagas ou trabalhos desse estilo.
Mais tarde, muitas vezes — embora não seja amigo de comédias — senti a tentação, o desejo, de me ajoelhar para vos pedir perdão, meus filhos, porque, com esta repugnância às fundações, apesar de ter abundantes motivos de certeza para fundar a Obra, resisti o quanto pude: sirva-me de desculpa, diante de Deus Nosso Senhor, o fato real de que, desde 2 de outubro de 1928, em meio àquela minha luta interna, tenho trabalhado para cumprir a Santa Vontade de Deus, iniciando o trabalho apostólico da Obra. Três anos se passaram, e agora vejo que, talvez, o Senhor tenha querido que eu experimentasse então, e que ainda continue a sentir, essa completa repugnância para que eu tenha sempre mais uma prova externa de que tudo é seu e nada é meu.
Este é o meu espírito e este deve ser o vosso espírito, minhas filhas e filhos. Não vindes à Obra para buscar nada: vindes entregar-vos, renunciar, por amor de Deus, a qualquer ambição pessoal. Todos têm de deixar alguma coisa se quiserem ser eficazes em Casa e trabalhar como Deus nos pede, como um burrinho fiel, ut iumentum! A única ambição do burrinho fiel é servir, ser útil; o único prêmio que ele espera é aquele que Deus lhe prometeu: quia tu reddes unicuique iuxta opera sua113, porque o Senhor recompensa cada um segundo as suas obras.
Filhos da minha alma: estais aqui, na Obra, porque o Senhor colocou em vossos corações o desejo puro e generoso de servir; um verdadeiro zelo, que faz com que estejais dispostos a qualquer sacrifício, trabalhando silenciosamente pela Igreja sem procurar qualquer recompensa humana. Enchei-vos dessas nobres ambições; reforçai em vosso coração esta disposição santa, porque o trabalho é imenso.
Devemos pedir a Deus, Nosso Senhor, que aumente nosso desejo de servir, porque messis quidem multa, operarii autem pauci114; porque os trabalhadores são poucos e a messe é grande: o mar do trabalho apostólico não tem praias, e há no mundo tão poucas almas que queiram servir! Considerai o que aconteceria se nós que queremos servir não nos entregássemos plenamente.
Meus filhos, nossa vida é curta, temos pouco tempo para viver na terra, que é quando podemos fazer este serviço a Deus. Diz o poeta: ao brilhar um relâmpago nascemos, e ainda dura o seu fulgor quando morremos, tão curto é o viver! 115 O salmista o escreve melhor: homo, sicut foenum dies eius, tamquam flos agri, sic efflorebit116; o homem, cujos dias são como o feno, florescerá como a flor do campo, que nasce com o primeiro beijo do sol e à noite murcha. É por isso que São Paulo nos diz: tempus breve est117, quase não temos tempo!
Servir, pois; porque o apostolado não é outra coisa. Por nossas próprias forças, nada podemos no campo sobrenatural; mas, sendo instrumentos de Deus, tudo podemos — omnia possum in eo, qui me confortat!118: tudo posso Naquele que me conforta! —, pois Ele dispôs, por Sua bondade, utilizar esses instrumentos ineptos. Assim, o apóstolo não tem outra finalidade senão deixar o Senhor agir, colocar-se à disposição, para que Deus cumpra — por meio das suas criaturas, por meio da alma eleita — sua obra salvífica.
O apóstolo é o cristão que se sente enxertado em Cristo, identificado com Cristo, pelo Batismo; habilitado a lutar por Cristo, pela Confirmação; chamado a servir a Deus com a sua ação no mundo, pela participação na função real, profética e sacerdotal de Cristo, que o torna apto a conduzir os homens a Deus, ensinar-lhes a verdade do Evangelho e corredimi-los com a sua oração e sua expiação.
O cristão disposto a servir é guia, mestre e sacerdote de seus irmãos, os homens, sendo para eles outro Cristo, alter Christus, ou melhor, como vos costumo dizer, ipse Christus119. Mas — insisto — trata-se de não fazer um trabalho pessoal, de não ter ambições pessoais; trata-se de servir a Cristo, para que Ele atue; e de servir também os homens, porque Cristo não veio para ser servido, mas para servir: non veni ministrari, sed ministrare120.
Servir todos os homens: temos, como campo de nosso apostolado, todas as criaturas, de todas as raças e de todas as condições sociais. Por isso, para chegar a todos, dirigimo-nos primeiro — em cada um dos ambientes — aos intelectuais, sabendo que qualquer tentativa de penetração na sociedade passa necessariamente por eles. Porque são os intelectuais que têm a visão de conjunto, que dão vida a qualquer movimento que tenha consistência, que dão forma e organização ao desenvolvimento cultural, técnico e artístico da sociedade humana. Minhas filhas e filhos: tenho-vos insistido na necessidade de nos desprendermos de toda ambição terrena e de nos enchermos da preocupação — que é uma ocupação contínua — de servir. Estamos convencidos de que nada importa, nada tem consistência, nada vale a pena, em comparação com essa sublime missão de servir a Cristo Nosso Senhor. Mas, precisamente porque aprendemos a desprezar o aplauso dos homens e toda vã procura de espetáculo, nosso afã por conservar o tesouro da humildade deve ser ainda mais atento e delicado.
Porque estamos expostos a um perigo muito sutil, a uma insídia quase imperceptível do inimigo, que, quanto mais eficaz nos vê, mais redobra seus esforços para nos enganar. Este perigo sutil — frequente, aliás, em almas dedicadas a trabalhar para Deus — é, meus filhos, uma espécie de soberba oculta, que nasce de se saber instrumento de coisas maravilhosas, divinas; uma autocomplacência silenciosa, ao ver os milagres que se operam por seu apostolado: porque vemos inteligências cegas que recuperam a visão; vontades paralisadas que se movem novamente; corações de pedra se tornam de carne, capazes de caridade sobrenatural e afeto humano; consciências cobertas de lepra, de manchas do pecado, que ficam limpas; almas totalmente mortas, podres — iam foetet, quatriduanus est enim121 —, que recuperam a vida sobrenatural.
E tantos obstáculos humanos superados; tantas incompreensões vencidas; tantos ambientes conquistados: um trabalho cada vez mais amplo e diversificado, cada vez mais eficaz... Tudo isso, meus filhos, às vezes pode dar ocasião a uma injustificada — mas possível — satisfação com nós mesmos. Devemos estar atentos para que isso não aconteça; devemos ter uma consciência muito fina e reagir imediatamente.
Não podemos admitir, nem por um instante, qualquer pensamento de soberba, por qualquer serviço nosso a Deus: porque, naquele mesmo momento, deixaríamos de ser sobrenaturalmente eficazes. Deus não quer servos presunçosos, satisfeitos consigo mesmos; Ele os quer, ao contrário, convencidos de sua própria indignidade e cheios de uma santa determinação de não impedir a obra da graça: servite Domino in timore, et exultate ei cum tremore; aprehendite disciplinam, nequando irascatur Dominus, et pereatis de via iusta122; servi o Senhor com temor — um temor que é o amor de filho, que não quer desagradar seu Pai — e regozijai-vos nEle com tremor — com comoção de amor, traduzo eu —: não aconteça que, alguma vez, o Senhor se irrite, e pereçais fora do caminho justo, e percais o caminho.
Vede como Santo Agostinho comenta essas palavras da Escritura: Não diz: e não andeis pelo caminho da justiça, mas sim: não pereçais desviando-vos do caminho da justiça. O que ele pretende com isso, senão avisar — àqueles que seguem o caminho da justiça — para que sirvam a Deus com temor, isto é, sem se ensoberbecerem? É como se lhes dissesse: não sejais soberbos, mas humildes. Alhures, diz também: não sejais altivos, mas rebaixai-vos até os humildes (Rom XII, 16). Regozijai-vos, pois, no Senhor, mas com tremor; sem vos gloriardes em nada, porque nada é colheita nossa; e aquele que se gloria, glorie-se no Senhor (II Cor X, 17-18). Não se desviem do caminho justo por onde começaram a andar, atribuindo a si mesmos a graça de caminhar nele123.
O espetáculo dos prodígios que Deus realiza por nossas mãos deve ser uma ocasião para nos humilharmos, para louvar a Deus e reconhecer que tudo vem dEle e que não fizemos nada além de estorvar ou, quando muito, ser pobres instrumentos nas mãos do Senhor.
Devemos pensar que existem muitas outras almas que trabalharam melhor do que cada um de nós, que se sacrificaram mais e rezaram com maior perseverança; mas que o Senhor quis servir-se mais de vós e de mim do que destas outras pessoas, para que se veja que é Ele quem atua, para que se veja que os instrumentos não importam ou importam muito pouco.
Porque Deus escolheu os néscios segundo o mundo para confundir os sábios, e Deus escolheu os fracos do mundo para confundir os fortes; e as coisas vis e desprezíveis do mundo, e aquelas que não eram nada, para destruir aquelas que são, para que nenhum mortal possa se gloriar diante dele124.
Então, minhas filhas e filhos, quando vos pareça que trabalhastes arduamente a serviço do Senhor, repeti as palavras que Ele mesmo nos ensinou: servi inutiles sumus; quod debuimus facere, fecimus125; somos servos inúteis: não fizemos mais do que tínhamos obrigação de fazer.
O resumo que sempre faço no final do dia, ao fazer meu exame, é pauper servus et humilis! E isto quando não tenho de dizer: Josemaria, Senhor, não estás contente com Josemaria. Mas, como a humildade é a verdade, são muitas as vezes em que — como acontece convosco — penso: Senhor, se não me lembrei de mim para nada, se tenho pensado só em Ti e, por Ti, eu me ocupei apenas em trabalhar pelos outros! Então a nossa alma contemplativa exclama com o Apóstolo: vivo autem iam non ego: vivit vero in me Christus126; não sou eu quem vivo, mas é Cristo que vive em mim.
Sem humildade jamais poderemos servir com eficácia, porque não sentiremos a necessidade de nos abandonar confiadamente à ação da graça, não teremos o impulso contínuo de recorrer a Deus como nossa única força. E não obteremos do Senhor as graças que Ele nos reservou, para a nossa santificação e a dos nossos companheiros: quoniam excelsus Dominus, et humilia respicit127; pois o Senhor é exaltado e olha para as coisas humildes.
Filhos da minha alma: sei que lutareis para ser humildes; sei que assim sereis maravilhosamente eficazes, porque sereis instrumentos dóceis nas mãos de Deus. E levareis o sal e a luz de Cristo para o mundo inteiro, principalmente com o exemplo da vossa vida: empreendamos, então, uma nova vida; façamos da terra céu, e assim mostremos aos gentios de que grandes bens estão privados. Porque, ao verem nossa conduta exemplar, contemplarão o próprio espetáculo do reino dos céus128.
Terminarei esta longa conversa convosco. As considerações que fizemos na presença de Deus nos serviram para compreender um pouco mais a profundidade, a beleza e a velha novidade da chamada à Obra. Passados tantos séculos, o Senhor quer servir-se de nós para que todos os cristãos descubram, finalmente, o valor santificante da vida ordinária — do trabalho profissional — e a eficácia do apostolado da doutrina pelo exemplo, pela amizade e pela confidência.
Jesus, Nosso Senhor, quer que proclamemos hoje em mil línguas — e com o dom de línguas, para que cada um saiba aplicá-la na própria vida —, em todos os recantos do mundo, essa mensagem velha como o Evangelho e, como o Evangelho, nova. Alegra-nos a alma — é como uma prova mais, embora não precisemos dela, da entranha evangélica do nosso caminho — encontrar traços dessa mesma mensagem na pregação dos antigos Padres da Igreja.
Citei-vos mais de uma vez, nesta carta, o que diz o Crisóstomo; ouvi agora outras palavras suas: Eu não vos digo: não vos caseis. Não vos digo: abandonai a cidade e afastai-vos dos negócios citadinos. Não. Permanecei onde estais, mas praticai a virtude. Para dizer a verdade, gostaria que aqueles que vivem no meio das cidades brilhassem mais por sua virtude do que aqueles que foram morar nas montanhas. Pois daí resultaria um bem imenso, visto que ninguém acende uma lâmpada e a põe debaixo do alqueire.
Daí que eu quisera — continua São João Crisóstomo — que todas as luzes estivessem nos candeeiros, para que a claridade fosse maior. Acendamos, pois, o fogo e façamos com que aqueles que estejam sentados nas trevas se vejam livres do erro. E não venhas me dizer: tenho filhos, tenho mulher, tenho que cuidar da casa e não posso cumprir o que me dizes. Se não tivesses nada disso e fosses tíbio, tudo estaria perdido; ainda que tudo isso te envolva, se fores fervoroso, praticarás a virtude.
Uma só coisa é necessária: uma disposição generosa. Se ela existir, nem a idade, nem a pobreza, nem a riqueza, nem os negócios, nem qualquer outra coisa pode constituir um obstáculo à virtude. E, de fato, velhos e jovens; casados e pais de família; artesãos e soldados já cumpriram tudo quanto foi mandado pelo Senhor.
Jovem era Daniel; José, escravo; Áquila exercia uma profissão manual; a vendedora de púrpura era responsável por uma oficina; outro era guarda de uma prisão; outro centurião, como Cornélio; outro estava doente, como Timóteo; outro era um escravo fugitivo, como Onésimo, mas nada disso foi obstáculo para nenhum deles, e todos brilharam por sua virtude: homens e mulheres, jovens e velhos, escravos e livres, soldados e conterrâneos129.
Como era clara, para os que sabiam ler o Evangelho, esta chamada geral à santidade na vida ordinária, na profissão, sem abandonar o próprio ambiente! No entanto, durante séculos, a maioria dos cristãos não a compreendeu: não se pôde dar o fenômeno ascético de que muitos buscassem assim a santidade, sem sair de seu lugar, santificando a profissão e santificando-se com a profissão. E, muito rapidamente, por força de não vivê-la, a doutrina foi esquecida; e a reflexão teológica foi absorvida pelo estudo de outros fenômenos ascéticos, que refletem outros aspectos do Evangelho.
Nestes anos, ao suscitar sua Obra, o Senhor quis que nunca mais se ignore ou esqueça a verdade de que todos devem santificar-se e de que corresponde à maioria dos cristãos santificar-se no mundo, no trabalho ordinário. Portanto, enquanto houver homens na terra, a Obra existirá. Sempre ocorrerá esse fenômeno: que haja pessoas de todas as profissões e ofícios, que buscam a santidade em seu estado de vida, nessa profissão ou nesse seu ofício, sendo almas contemplativas no meio da rua.
Do que vos acabo de dizer, pode-se deduzir, minhas filhas e filhos, que nunca haverá para a Obra problemas de adaptação ao mundo; nunca se deparará com a necessidade de considerar o problema de se atualizar. Deus atualizou sua Obra de uma vez para sempre, dando-lhe essas características seculares, laicais, que vos comentei nesta carta. Nunca haverá necessidade de nos adaptarmos ao mundo, porque somos do mundo; nem teremos de ir atrás do progresso humano, porque somos nós — sois vós, meus filhos —, juntamente com os outros homens que vivem no mundo, que fazeis esse progresso com vosso trabalho ordinário.
Sede fiéis, ajudai-me a ser fiel e a saber esperar: sem pressa, porque — no devido tempo — o Senhor, que quis sua Obra, fará cristalizar o modo jurídico, que no momento não se vê, para que a Santa Igreja reconheça nossa maneira divina de servi-la, no mundo — no meio da rua —, com água clara e ar livre, sem privilégios, conservando a essência da nossa vocação: sem sermos religiosos, porque o Senhor não quer que sejamos religiosos.
Rezai, rezai muito: não vos esqueçais de que a oração é onipotente. Lembrai-vos de que Jesus disse: quodcumque petieritis Patrem in nomine meo, hoc faciam130; que tudo quanto pedirdes ao Pai em meu nome, eu o farei. E que qui coepit in vobis opus bonum, perficiet131; quem começou em vós a boa obra vai completá-la. Expus-vos razões bem sobrenaturais, que me levam a rezar com fé e a esperar, em vez de buscar agora uma aprovação eclesiástica oficial, que teria certamente o perigo de começar a desvirtuar nossa vocação divina, confundindo-a com a vocação dos religiosos. E isto, não: porque o meu Senhor Jesus me pedirá contas, e — certamente — desertaríeis em massa, e faríeis bem, não tolerando que fossem violentadas vossas consciências de filhos de Deus na Obra de Deus.
Tende completa segurança, portanto, de que a Obra sempre cumprirá sua missão com eficácia divina; responderá sempre ao fim para o qual o Senhor a quis na terra; será, com a graça divina — por todos os séculos —, um instrumento maravilhoso para a glória de Deus: sit gloria Domini in saeculum!132
Abençoa-vos com todo o coração o vosso Padre.
Madri, 9 de janeiro de 1932
Ef 1, 10 (Vg).
SANTO IRINEU DE LYON , Adversus haereses, III, 16, 6 (SC 211, pp. 313-314).
Jo 12, 32.
Mt 5, 48
São João Crisóstomo, Adversus oppugnatores eorum qui ad monasticam vitam inducunt, 1, III, 14 (PG 47, col. 374).
Lc 12, 48; “quem qui invenit [...] emit agrum illum”: “que, quando um homem o encontra, ele o esconde e, feliz com o achado, vai e vende tudo o que tem e compra aquele campo”.
Mt 13, 44. [N. do E.]
Mt 4, 19-20.
Mt 8, 21-22.
Lc 9, 61-62.
SÃO JOÃO CRISÓSTOMO, In Genesim homilia, 43, 1 (PG 54, col. 396).
Mt 13, 47.
Jr 23, 8; “de terra Aquilonis et de cunctis terris”: “das terras do norte e de todas as terras”.
Jr 16, 16-17.
1 Tm 2, 4.
1 Cor 16, 24.
Cf. Jo 15, 15.
Jo 11, 35; “et lacrimatus est Iesus”: “e Jesus chorou”.
Jo 11, 3.
At 10, 38.
Mt 23, 1-4.
Mt 23, 5.
Tg 2, 14.26.
SANTO Inácio de Antioquia, Epistula ad ephesios, c. 15, 1-2 (SC 10, p. 71).
Cf. Mt 5, 13-14.
1 Cor 11, 7; “vir quidem non debet [...] imago et gloria Dei est”: “o homem, de fato, não deve cobrir a cabeça, pois é imagem e glória de Deus”.
Mt 5, 16.
Lc 12, 41-42.
Lc 12, 43. [N. do E.]
Mt 13, 34.
1 Jo 4, 5.
Jo 17, 18.
“por um só conhecerás a todos”. VIRGÍLIO, Eneida, 2, 65-66. [N. do E.]
Jo 21, 17.
Tg 5, 18.
Cf. 2 Cor 2, 15; “bonus odor Christi”: “o bom odor de Cristo”.
Mt 6, 1.
Mt 6, 16.
Sl 100 [99], 2; “servite Domino in laetitia”: “servi ao Senhor com alegria”.
Rm 15, 5-6.
Mt 11, 29.
Fl 2, 7.
Fl 2, 8.
Jo 15, 15.
Mt 26, 50.
Jo 15, 13.
Jo 13, 23; “erat ergo recumbens [...] quem diligebat Iesus”: “estava recostado no peito de Jesus um dos discípulos, o que Jesus amava”.
Sl 62 [61], 13.
Mt 9, 37.
G. A. BÉCQUER, Rimas y leyendas, Rima n. 69, Madri, Editex, 2013, p. 52.
Sl 103 [102], 15.
1 Cor 7, 29.
Fl 4, 13.
“ipse Christus”: “o próprio Cristo”.
Mt 20, 28.
Jo 11, 39; “iam foetet, quatriduanus est enim”: “já cheira muito mal, porque já dura quatro dias”.
Sl 2, 11-12.
SANTO AGOSTINHO DE HIPONA, De correptione et gratia liber unus, c. 9, 24 (CSEL 92, pp. 247-248).
Lc 17, 10.
Gl 2, 20.
Sl 138 [137], 6.
SÃO JOÃO CRISÓSTOMO, In Matthaeum homilia, 43, 5 (PG 57, col. 463).
Documento impresso de https://escriva.org/pt-br/cartas-1/carta-3/ (05/02/2025)